Dilma no Congresso: três promessas, três dificuldades
Em mais um bom exemplo, Dilma compareceu hoje ao Congresso para transmitir pessoalmente a mensagem anual do presidente. Ao que me lembro, é a primeira vez que isso ocorre. É uma demonstração inequívoca de apreço e certamente fará escola. As intenções manifestadas no discurso foram muito boas, malgrado o cacoete de atribuir ao governo Lula a exclusividade pelos avanços sociais do Brasil.
A fala presidencial incluiu três promessas que merecerão aplausos, mas dificilmente se realizarão. A primeira é a de promover uma reforma política, que ganhou palmas entusiasmadas dos parlamentares. A tarefa é gigantesca. A experiência mostra que reformas políticas acontecem quando os parlamentares se sentem melhor no futuro do que no atual regime politico-eleitoral. Qualquer proposta de reforma digna desse nome implicará o desaparecimento da maioria dos partidos. Restarão uns cinco efetivamente relevantes. A reforma estará inevitalmente concentrada em mudar a forma de eleger deputados e vereadores. Dificilmente se construirá o consenso necessário. Veremos.
A segunda promessa foi a da reforma tributária. Pode ser que haja um avanço aqui e outro acolá, mas não uma reforma efetiva, que mude a estrutura dos tributos, elimine o caos atual e nos legue um sistema racional. Qualquer reforma para valer implicará a reformulação ampla do ICMS, de preferência a junção de todas as incidências sobre o consumo em um IVA nacional, cobrado pelo governo federal e distribuído automaticamente com os Estados e municípios. Isso é impossível sem a concordância dos governadores e eles serão contra qualquer mudança que elimine seu poder de alterar o ICMS, subir e baixar alíquotas, criar regimes tributários, conceder incentivos fiscais, aumentar o campo da substituição tributária e assim por diante. Nem mesmo a desoneração dos investimentos, aparentemente uma parte fácil do processo, poderá ocorrer sem a concordância deles. O principal tributo sobre os investimentos é o ICMS.
A terceira promessa é investir em infraestrutura, particularmente nos aeroportos. Essa é viável, pois há recursos privados disponíveis e apetite para investir na área. Ocorre que sua concretização exigirá o abandono de visões ideológicas sobre privatização, particularmente sobre a concessão de serviços públicos de transporte e energia. É preciso criar marcos regulatórios geradores de confiança para os investidores. Será preciso abandonar o modelo de “modicidade tarifária”, que exige pesados subsídios via empréstimos do BNDES ou inibem a realização de investimentos pelos concessionários da área de transporte.
Em resumo, é preciso ver para crer.
As promessas econômicas para 2011 não fecham
Agora é internacional. O Brasil ganhou destaque pela má condução fiscal. O FMI divulgou ontem o seu periódico relatório sobre a situação fiscal no mundo, no qual alertou para a “brusca” piora do quadro fiscal brasileiro, em especial nos dois últimos anos do governo Lula. Em Davos, um concorrido seminário sobre a América Latina louvou a nova e auspiciosa realidade da região, onde 90% aprenderam os valores da gestão macroeconômica responsável. A preocupação residiu na trajetoria fiscal brasileira.
À exceção de alguns renitentes, incluindo gente do Ministério da Fazenda, é consensual a percepção de que vivemos uma perigosa trajetória inflacionária. Quem é capaz de enxergar os sinais de risco está de acordo que é preciso um esforço fiscal para repor o superávit primário em nível responsável e complementar o Banco Central em sua missão de fazer a inflação convergir para a meta de 4,5% (está em 6% neste momento).
Acontece que até agora o governo não disse como vai fazer o ajuste. Os mais céticos começam a desacreditar, fundados numa incômoda realidade. Afinal, será possível que o mesmo ministro da Fazenda que permitiu a farra fiscal fará exatamente o contrário? É preciso dar ao ministro o benefício da dúvida. O problema é que não será fácil atingir a meta anunciada de 3,1% do PIB sem cortar investimentos do PAC ou recorrer a lamentáveis mágicas contábeis. Em favor dos céticos está a ausência de um plano coerente, transparente e crível sobre as medidas para viabilizar o cumprimento da meta de superávit primário.
Ontem, a presidente prometeu que a inflação vai continuar sob controle e que os investimeentos do PAC não serão desbastados. Antes de sair de férias, o ministro da Fazenda anunciou que o PIB vai crescer 5,5% em 2011. Não há como fechar essa conta. As promessas são incoerentes entre si. Uma ou mais delas vão ter que ser esquecidas.
O faz de conta segue nas contas do superávit primário
É impressionante. Todos sabem que o governo não cumpriu a meta de superávit primário de 2010. O Ministério da Fazenda, que também sabe, continua a usar artifícios contábeis para provar que cumpriu a meta. E anuncia que vai usar o artifício, como se não fosse possível detectar subterfúgios tão claros. Segundo o Estadão de hoje, o governo vai abater R$ 11 bilhões de despesas do PAC no cáculo do superávit primário.
A ideia de não considerar investimentos em metas fiscais não é nova. Propostas de calcular metas com exclusão de certos investimentos surgiram nos anos 1980, na esteira dos programas de ajuste fiscal de países da América Latina. Constatou-se que dificuldades políticas terminavam penalizando investimentos públicos em favor de despesas correntes. As metas eram cumpridas, mas com piora da qualidade do gasto público e sacrifício de ações em prol do crescimento.
O FMI decidiu que, em casos de programas de ajustes efetuados com seu apoio, elegeria certos investimentos importantes para o crescimento, os quais seriam abatidos do cálculo das metas fiscais. Para evitar que a medida ampliasse a despesa total via aumento imoderado dos investimentos, o FMI resolveu fazer um teste. Os projetos de investimento seriam limitados e escolhidos de comum acordo, avaliados pelo Banco Mundial e teriam sua execução adequadamente monitorada. Daí por que se falava em Projeto Piloto de Investimento – PPI.
Ora, o que o Ministério da Fazenda faz agora nada tem a ver com essa ideia. Cria receitas artificiais, como a incrível contabilização, como receita corrente, da venda futura de barris de petróleo do pré-sal à Petrobrás e outros menos escandalosos. E resolve abater do cálculo todos os investimentos do PAC, um outro absurdo, ou itens selecionados em montante capaz de dar vida contábil à fantasia do cumprimento da meta de superávit primário. Já era hora de a Fazenda acreditar que essas manobras são percebidas, conspiram contra a credibilidade fiscal e ferem princípios basilares da contabilidade e de condução das finanças públicas.
Dilma emite sinais positivos
Em suas duas primeiras semanas, a nova presidente merece elogios pelo comportamento. Ela está reintroduzindo a liturgia do cargo. Não dá entrevistas toda hora, não cruza o país todo dia fazendo discursos, soltando gracejos, falando mal dos antecessores. Ela parece governar. O chefe do governo precisa ser exemplo e símbolo. O comedimento é parte do processo. Deve viajar somente quando justificável, principalmente por razões de Estado. Sua primeira saída da Capital hoje, para visitar o Rio e sobrevoar as regiões atingidas pelas chuvas, atendeu a esse requisito. Em todos os países, o lider maior deve fazer-se presente nas tragédias. O povo precisa vê-lo prestando solidariedade às vítimas e sinalizando providências.
Dilma sinalizou que não vai tentar uma reforma tributária ampla. Isso pode decepcionar, mas está correto. Não há como fazer esta reforma neste momento, menos ainda reduzir a carga tributária, que exige complexas mudanças constitucionais e difíceis ou impossíveis negociações com governadores. Melhor tentar mudanças viáveis, que simplificam, reduzem burocracia e melhoram a eficiência. A experiência mostra que o Congresso sempre pode piorar uma reforma tributária ampla, como se viu com o projeto em tramitação. Se tentar o máximo, pode ficar sem o mínimo viável.
Diz-se que que ela vai criar conselhos de gestão, nos quais serão examinados casos concretos, metas, projetos e por aí afora. Outro bom sinal. Melhor ainda se extinguir o “Conselhão” do Lula, que servia apenas para enaltecer o presidente e o governo. O órgão nunca exerceu função relevante, não gerou nenhuma ideia aproveitável, não inspirou qualquer medida. Baseou-se em experiências europeias, em contextos políticos, institucionais e culturais radicalmente distintos da nossa realidade.
Espera-se que Dilma anuncie amanhã um programa fiscal duro. Se a notícia se confirmar e se for apresentado um plano fiscal com começo, meio e fim, devemos comemorar. Lula nunca fez um discurso em prol da austeridade fiscal (FHC fez mais de um). O plano restauraria a credibilidade fiscal do governo, dramaticamente abalada pela injustificável expansão de gastos correntes, particularmente dos dois últimos anos de Lula, e pelo uso de maquiagens e outros subterfúgios para fazer crer que o governo cumpria metas de superávit primário.
É ver para crer, mas os sinais são supreendentemente positivos.
Indústria perde R$ 17,3 bilhões. Será?
Deu no Estadão de hoje: a indústria brasileira teria perdido R$ 17,3 bilhões apenas nos primeiros nove meses de 2010, por conta das importações, deixando de criar 46 mil empregos. O estudo, produzido pela Fiesp, mostra que o coeficiente de importações, que mede a demanda interna suprida por produtos importados, passou de 19,6% no acumulado de janeiro a setembro de 2008 para 21,2% em 2010. Segundo relata o jornal, com base no estudo, “se o setor não tivesse perdido participação para os produtores estrangeiros, as importações do setor cairiam de R$ 232,4 bihões para R$ 215 bilhões. Ao mesmo tempo, a produção doméstica subiria de R$ 1,055 trilhão para R$ 1,072 trilhão.” O emprego industrial aumentaria 0,58%.
Números impressionantes, não? Acontece que são enganosos. O estudo é vítima de uma armadilha da estatística. O defeito da análise está no que os economistas chamam de “equilíbrio parcial”. Um determinado fato não pode ser isolado do todo sem consequencias. Daí o paradoxo: se o nível de utilização da capacidade da indústria está nas proximidades de seus máximos históricos, como falar em perda? É que o aumento das importações tem efeitos sistêmicos, que não podem ser revelados apenas pelo comportamento das compras externas.
Não tem lógica o cálculo da Fiesp. É preciso ver o todo. A valorização cambial, tida como causa de uma suposta desindustrialização, aumenta os salários reais e eleva o poder de compra da classe trabalhadora. Ou seja, incrementa a demanda. As importações de partes, peças e componentes barateia o preço final de produtos industriais e aumenta suas vendas. Mais renda, mais crédito e menores preços contribuem para elevar a demanda de produtos industriais. Assim, mesmo que tenha havido mais importações, as empresas podem estar vendendo mais e não menos, como erradamente diz o estudo. Como explicar que a indústria automobilística tenha registrado recorde de produção em 2010, ano em que aumentaram substancialmente as importações de veículos?
Claro, haverá casos em que as empresas reduziram sua produção por conta da concorrências das importações. Mas isso não dá para generalizar. A coisa é mais complicada do que sugere o estudo da Fiesp, que impressionou os jornalistas e editores do Estadão. A notícia vai alimentar o lobby por medidas forçadas de desvalorização cambial. Os trabalhadores que se cuidem, pois pode vir mais inflação. Se as importações caírem em meio a aumento dos índices de preços, pode haver queda da demanda e da produção industrial. Aí verdadeiramente.
Mais gente desafinando no governo, agora na Previdência
Notas desafinadas na orquestra do governo são comuns em seu início. Muita gente chega sem tarimba de falar à imprensa, outros não dominam bem os assuntos de que vai cuidar e alguns tendem a externar suas próprias visões do mundo, sem levar em conta que agora fazem parte de um conjunto. Assim, devemos relevar os escorregões de ministros e outras autoridades neste começo. Já comentamos aqui as declarações do novo ministro do Desenvolvimento, que deitou falação sobre câmbio e juros, atribuindo equivocamente ao ministro da Fazenda a exclusividade para falar desses assuntos.
Agora foi a vez do novo ministro da Previdência, Garibaldi Alves. Como disse O Globo de hoje, ele anunciou estudo para substituir o fator previdenciário pela aposentadoria por idade mínima. O ministro ter-se-ia inspirado nas reclamações que recebeu, como parlamentar, contra o fator previdenciário, criado no governo FHC. A matéria acrescenta que gente do governo e especialistas dizem que o fator não cumpre mais seu objetivo inicial de retardar aposentadorias e pune quem começou a trabalhar mais cedo.
O fator previdenciário, como ensinam Fabio Giambiagi e Paulo Tafner em recente livro (Demografia: a ameaça invisível, Ed. Campus), “nada mais é do que o número resultante de uma fórmula que combina idade de aposentadoria, tempo de contribuição e a expectativa de sobrevida apontada pelo IBGE em função das tábuas de mortalidade atualizadas todos os anos”. Os cálculos atuariais da Previdência deveriam considerar o tempo de contribuição e a expectativa de vida pós aposentadoria, isto é, por quantos anos o índivíduo receberá o benefício. Se ele passar a viver mais do que o previsto, os cálculos ficam furados. Vai faltar dinheiro.
Como não é possível deixar de pagar a aposentadoria, existem quatro saídas para o problema. A primeira e mais racional seria aumentar o prazo de aposentadoria; a segunda, elevar as contribuições; a terceira (adotada no Brasil nos últimos anos), deixar o déficit aparecer e financiá-lo com dívida ou mais carga tributária incidente sobre todos e não apenas os aposentados; a quarta e mais desastrosa (adotada no Brasil por certo tempo) é conviver com a inflação, que corroi a valor das aposentadorias.
O fator previdenciário é um razoável substituto para a ampliação do prazo de aposentadoria. Foi inventado pelos suecos. Tem prestado enorme serviço ao Brasil, um dos pouquíssimos países onde sequer existe idade mínima para aposentadoria. O critério aqui é o de tempo de contribuição. O fator ajusta o valor das aposentadorias de acordo com a expectativa de vida pós aposentadoria, calculado com base nos estudos do IBGE. Essa expectativa tem aumentado muito nos últimos anos, o que é uma boa notícia para quem vive (um sinal de que o país melhora) e péssima para as contas da Previdência.
Com o fator, o brasileiro pode continuar a se aposentar por tempo de contribuição, mas receberá um valor menor do que receberia antes da sua instituição. Se quiser receber mais, terá que ficar mais tempo trabalhando (nem tanto quanto os europeus, japoneses, americanos, argentinos, mexicanos, etc, que se submetem à regra da idade mínima).
Mesmo que adotada a idade mínima no Brasil, o fator previdenciário teria que continuar (como na Suécia). Não há que falar em injustiça, pois a opçao de se aposentar cedo é do indivíduo. Como é natural, os aposentados não gostam da regra, pois ela lhe retira o que consideram um direito. Afinal, dizem, contribuíram “a vida toda”. Acontece que a regra visa a proteger a comunidade contra os efeitos sociais e econômicos negativos do déficit previdenciário (embora tenha gente pensante que diz não existir o déficit, um despautério).
O senador Paulo Paim (PT-RS), que acaba de renovar o mandato por mais oito anos, é o campeão da ideia de extinguir o fator previdenciário. Tem sempre um projeto de lei pronto para arrasar as contas da Previdência e um deles foi aprovado pelo Senado (ainda não pela Câmara). Os aposentados e familiares são a grande fonte de votos de Paim. Todos os cálculos já mostraram que a medida seria uma hecatombe financeira de consequencias imprevisíveis (mas todas ruins). Lula, que antes de chegar ao governo criticava o fator, deu-se conta de sua utilidade e se posicionou contra a proposta. A nova presidente certamente também é contra. Como é, então, que o novo ministro da Previdência diz que vai estudar o fim do fator? Ademais, se conhecemos bem os nossos congressistas, a tendência seria a de aprovar o fim de fator e manter o sistema de aposentadoria por tempo de contribuição, ou seja, o pior dos mundos.
Garibaldi, um homem sensato, provavelmente vai desistir da ideia. E se conformar de que não pode descascar o abacaxi que recebeu (como ele próprio disse) agradando aposentados e políticos.
Ministro da Fazenda não fala sobre câmbio e juros. Age
Dois preços básicos da economia – a taxa de câmbio e a taxa de juros – não podem ser influenciados por declarações inconsequentes de autoridades, menos ainda do ministro da Fazenda. Ou o governo tem medidas a anunciar ou fica calado. Se ameaçar tomar medidas e não adotá-las, o ministro perde credibilidade. Pior, pode provocar movimentos especulativos e produzir ganhos para uns poucos, em detrimento de muitos.
Pois foi exatamente o que fez ontem o ministro Guido Mantega. Falou sem ter o que anunciar. Começou com o incrível anúncio, por sua assessoria, de que daria um entrevista para falar de câmbio. Não me recordo de ter visto algo parecido na história do Ministério da Fazenda. Antes de começar a falar platitudes sobre o assunto, a taxa de câmbio já tinha subido 1%. Antes de terminar sua entrevista, quando já estava claro que nada anunciaria, o câmbio se valorizou 0,8%. Quem apostou que a entrevista seria um blá-blá-blá, ganhou uma boa nota.
Não é assim que deveria funcionar. Ao falar à toa o ministro da Fazenda provoca volatilidade no mercado cambial, promove a transferência de renda entre agentes do mercado e se desmoraliza. Melhor seria ficar calado ou falar apenas quando tivesse que anunciar alguma coisa. Mesmo que provocado pela imprensa, deveria furtar-se de comentar sobre câmbio e juros.
Equipe de Dilma começa desafinada e no palanque
Duas declarações no entusiasmo da posse de novos ministros mostraram que o seu discurso ainda carece de afinamento e que os palanques, típicos da era Lula, continuam em funcionamento. O ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior declarou que Mantega, o da Fazenda, é quem coordena a equipe econômica. Se ele quis dizer, como parece, que isso inclui o Banco Central, estará externando um desejo indisfarçável de Mantega, mas incompatível com a autonomia operacional da instituição, assegurado pela nova presidente. Sua visão confirma a dualidade que vai continuar na equipe, com a Fazenda de um lado e o Banco Central de outro. Como para não haver dúvida, Pimentel disse que não fala de juros e câmbio, a seu ver responsabilidade da Fazenda. Pelo que se sabe, ministro da Fazenda não fala de juros. Taampouco deveria falar de câmbio.
Já a nova ministra do Planejamento, Miriam Belchior, recorreu a um mito da esquerda brasileira, o de que teria havido um desmonte do Estado. Disso foram acusados os ex-presidentes Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, que longe de merecerem a pecha contribuíram na verdade para reduzir o tamanho do Estado e sua presença injustificável na produção de bens e serviços. A prova é que Lula não desfez nenhum dos supostos desmontes. Essa é uma das razões por que a esquerda condena a privatização e o governo Lula com ela fez coro, seja para se afastar de ideias de venda de estatais, por mais corretas que fossem, seja para evitar a concessão de estradas e outros serviços públicos à iniciativa privada. A ministra confundiu o aumento dos salários e do número de servidores públicos, promovido no governo Lula, como indicador de remonte do Estado. A ação está mais para desperdício, ainda que em muitos casos as contratações tenham sido justificadas.
Dilma reconhece o passado
Os destaques do discurso de posse de Dilma foram tantos que não sobrou espaço para assinalar uma passagem relevante, a do seu reconhecimento de que existiu vida antes da chegada de Lula ao poder. Para ela, “um governo se alicerça no acúmulo de conquistas realidadas ao longo da história. Ele sempre será, ao seu tempo, mudança e continuidade. Por isso, ao saudar os extraordinários avanços recentes, é justo lembrar que muitos, a seu tempo e a seu modo, deram grandes contribuições às conquistas do Brasil de hoje”. Viva!
Assim, o “nunca antes na história deste país”, cede lugar a um novo discurso presidencial. Agora se reconhece que o Brasil não foi descoberto em 2003 nem deve suas conquistas exclusivamente a Lula. A desfaçatez é substituída pelo realismo.
A experiência dos últimos séculos mostrou que períodos de rápido crescimento devem muito a mudanças institucionais e à gestão de governos anteriores. Cabe a cada governante preservar as conquistas e promover novos avanços. Lula destoou duplamente desse padrão: nunca reconheceu o papel de seus antecessores na construção do Brasil de seu tempo e descuidou do plantio das sementes que deveriam frutificar na administração de seus sucessores.
Ao reconhecer o passado e sua contribuição para o presente, Dilma revela um estilo mais condizente com a seriedade e a liturgia do cargo. Vale comemorar.
BC não terá vida fácil no governo Dilma
Se alguém tinha dúvida, pode eliminá-la: o Banco Central vai operar sob ambiente hostil no governo Dilma e os ataques virão, como ocorreu depois da saída de Palocci, de onde não deveriam vir, isto é, do Ministério da Fazenda. A dualidade vai continuar e isso não sinaliza coisa boa.
Hoje, Mantega reagiu explicitamente ao Relatório de Inflação ontem divulgado pelo Banco Central. O BC tinha ficado incomodado com as interpretações da ata da última reunião do Copom, que manteve a taxa Selic em 10,75%. Apesar de a maioria esperar sinais claros de que ele reagiria em janeiro à alta da inflação e à deterioração das expectativas, a ata pareceu a muitos um texto ambíguo, sem uma mensagem clara a ser captada pelos especialistas. Daí por que o relatório foi duro, como nunca havia sido: será preciso aumentar os juros para se contrapor à alta dos preços. O balanço de riscos pendeu definitivamente para a inflação. Recado mais claro impossível: a Selic subirá em janeiro próximo.
Tudo bem? Não. Mantega tem sua própria ideia da situação. Para ele, a inflação de alimentos não é estrutural. Os preços vão cair assim que as cotações das commodities caírem. Fantástico, não? E o que dizer dos preços dos serviços, que estão rodando acima de 7% em bases anuais? Não fosse isso, a inflação de alimentos é, sim, estrutural. Decorre em grande parte da demanda da China, que se mantém elevada, e da desvalorização do dólar, que tende a continuar e aumenta as cotações. A não ser por uma baita crise, essa situação não vai mudar.
Mesmo que não fosse estrutural, a alta dos alimentos teria que ser enfrentada pelo BC, ao contrário do que sugere o ministro. Isso porque ela tende a contaminar outros preços, como qualquer economista deveria saber. E isso é mais verdadeiro no Brasil, onde ainda vigora uma forte cultura de indexação. Em outras palavras, as altas de alimentos aumentam a inércia inflacionária.
Mas por que diabos o ministro da Fazenda se expõe dessa maneira? Não é difícil explicar. Tem sido assim desde que ele chegou ao cargo. Ele diverge publicamente do BC e seus assessores vazam informações negativas contra a política monetária.
Em resumo, o BC não terá vida fácil no governo Dilma. O perigo é ela não ter o pragmatismo de Lula e decidir ouvir Mantega. Pode cometer o grave erro de emitir uma ordem para o BC baixar os juros. Contentaria muitos, mas poderia disparar uma desastrosa crise de confiança. Resta confiar na sensatez e nos conhecimentos de economia do futuro chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, e nos conselhos que pode dar à nova presidente, neutralizando as investidas da Fazenda.