Archive for março, 2012
Agora, o controle de preços da gasolina é oficial
Até os anos 1980, quando vigorava o controle de preços, a gasolina e o diesel eram dois dos principais itens sob vigilância do governo. No governo Geisel, os órgãos que autorizavam reajuste de preços públicos ou de bens fornecidos por empresas estatais perderam o poder para o Ministério da Fazenda, que passou a dar a última palavra sobre o assunto. Depois do Plano Real, todo esse processo foi revisto, reduzindo-se ou eliminando-se a interferência da Fazenda no controle de preços públicos.
No caso da gasolina e do diesel, a maior abertura da Petrobrás ao investimento estrangeiro exigiu a fixação de regras claras para o reajuste da gasolina e do diesel. No governo FHC, estabeleceu-se uma fórmula paramétrica, que levava em conta os preços praticados no Golfo do México e não a vontade da Fazenda. No governo Lula, a regra foi paulatinamente deixada de lado e a Petrobrás se submeteu a rigoroso controle de preços, que se acentuou nos anos finais da primeira administração petista.
No governo Dilma, o paulatino afrouxamento da política monetária começou a por sob risco o cumprimento da meta para a inflação. Em meados de 2011, as expectativas inflacionárias sinalizavam que o limite superior da meta seria ultrapassado. Isso coincidia com a elevação dos preços do petróleo, na esteira da piora da crise global, particularmente na Europa. Ficou clara a defasagem dos preços da gasolina e do diesel, mas o governo decidiu não revê-los. Era uma questão de honra cumprir a meta para a inflação e assim desmentir os prognósticos dos analistas de consultorias e de instituições financeiras.
As interferências do governo na Petrobrás, particularmente o controle de preços, provocaram forte queda de suas ações no mercado. Ao mesmo tempo, o controle impunha pesado ônus à indústria do etanol, cujos preços mantêm uma relação com os da gasolina. Foi então que o governo recorreu a um velho artifício dos tempos passados, qual seja o uso da tributação para atenuar os estragos do controle de preços. Autorizou-se a Petrobrás a reajustar os preços, mas sem impacto no consumidor, manobra que se tornou possível mediante renúncia do Tesouro à arrecadação da Cide, que incide sobre tais preços. Alivou-se a Petrobrás, sem aliviar os produtores de etanol.
Com essa e outras manobras, o governo conseguiu cumprir a meta para a inflação. O IPCA de 2011 variou precisos 6,5%, justamente o limite superior da meta. Em nenhum momento, o governo admitiu que manipulava os preços dos derivados de petróleo, pois isso seria confirmar a maquiagem do índice de inflação e reduzir ainda mais a já abalada credibilidade do Banco Central e do regime de metas.
O Estadão de ontem escancarou o controle de preços da Petrobrás. Em entrevista, o ministro de Minas e Energia reconheceu a manobra com a Cide. Mais grave ainda, informou que a empresa pediu o reajuste da gasolina, mas o governo não decidiu ainda se concordará. Para ele, embora a gasolina esteja há nove anos sem reajuste, “o governo tem suas responsabilidades também com o processo inflacionário. Tem de olhar a necessidade da Petrobrás, até para seus investimentos, mas olha também o interesse da economia”. E prosseguiu: “a balanço tem dois pratos. De um lado, o interesse legítimo da Petrobrás. De outro, o interesse legítimo de conter a inflação”.
É inacreditável, mas verdadeiro. O governo diz, com todas as letras, que interfere nos preços de uma empresa de capital aberto, com acionistas no Brasil e no exterior, que acreditaram na seriedade e no profissionalismo da gestão da empresa. E desmoraliza o regime de metas para a inflação ao explicitar que o Banco Central é auxiliado por controle direto de preços de produtos importantes na composição do índice de inflação. A rigor, caberia a abertura de um inquérito pela CVM. Ou uma ação dos acionistas minoritários contra o governo.
Na “guerra dos portos”, um dispendioso tiro n’água
Diagnósticos equivocados costumam resultar na prescrição errada do remédio e provocar efeitos colaterais indesejáveis. Esse é o típico caso da decisão do governo de lutar pelo que entende ser a “guerra dos portos”. A ideia, defendida por lideranças da indústrias e apoiada pelo Ministério da Fazenda, é eliminar os incentivos fiscais do ICMS criados por alguns Estados para importações por seu território, inclusive via portos secos (caso de Tocantins). A medida está na proposta de Resolução 72, do Senado.
Intuitivamente, faz sentido. Se os Estados barateiam o valor da importação, diz-se, o produto entrará no país em competição desleal com a indústria brasileira. Assim, o incentivo equivaleria a uma valorização cambial e contribuiria para a desindustrialização do país. Será?
Um exame mais detido da questão dirá que a medida em estudo pode acarretar novos problemas sem resolver aquele que se imagina existir. A grande maioria dos bens importados com tais incentivos é constituída de matérias-primas, partes, peças e componentes. Tudo indica que a indústria que os importa recorre ao benefício diante da necessidade de mudar sua cadeia de suprimentos. É uma forma de lidar com a perda alarmante de sua competitividade, provocada por problemas estruturais graves (que todos conhecem e não precisam ser aqui comentados). Ou mudam, comprando mais barato, ou não preservam o mínimo de competitividade. Ou mudam ou podem morrer.
A decisão das empresas está dissociada, pois, da guerra fiscal. Ela buscará o benefício se o incentivo fiscal superar o custo adicional de transporte (considerado o porto pelo qual importaria naturalmente). Isso posto, a vantagem não é o crédito presumido do ICMS, como vem afirmando o governo, mas o diferencial entre o benefício e o custo adicional de transporte. Está equivocado, assim, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, que ontem no Senado considerou apenas o ganho fiscal para calcular que o incentivo reduz a taxa de câmbio, de R$ 1,80 para R$ 1,64 por dólar.
Ao contrário do que diz o lobby favorável à medida e o próprio governo, a mudança da alíquota interestadual do ICMS pode ter efeito nulo ou muito pequeno nas importações. Um caso interessante, as turbinas para hidroelétricas da região Norte estão sendo importadas pelo Estado de Tocantins, com alíquota de apenas 1% de ICMS. Alguém imagina que elas deixarão de ser importadas com a medida do governo? Se o incentivo acabar e o produto nacional ficar mais caro, as empresas continuarão importando.
Se aprovada, a medida terá quatro efeitos colaterais negativos:
1) o governo terá que compensar os Estados pela perda de arrecadação. Segundo se vê na imprensa, o Espírito Santo perderia cerca de R$ 2 bilhões anuais, quase um terço de sua arrecadação; em Santa Catarina, a perda seria de R$ 1 bilhão. E por aí vai;
2) provavelmente o governo terá que se comprometer a criar um fundo de desenvolvimento regional para compensar a perda do instrumento de atração de investimentos pelos Estados. Quanto será o valor desse fundo? Alguns Estados reivindicam que seja de pelo menos R$ 20 bilhões. Qualquer que seja o valor, mesmo que instituído, deixará descontentamentos;
3) sem a segurança de que serão compensados, os Estados provavelmente conseguirão que seus senadores votem contra a medida, mesmo que pertencentes à base parlamentar do governo. Isso contribuirá negativamente para a coesão dessa base;
4) as importações incentivadas representam cerca de 25% do total. O fim do incentivo deslocará as mercadorias para outros portos, particularmente o de Santos, que já está congestionado. Haverá uma piora na logística, que impactará custos das empresas e reduzirá a competitividade das que exportam.
A guerra fiscal precisa acabar, particularmente porque usa instrumento pouco apropriado, isto é, um imposto sobre o consumo, e porque gera distorções alocativas que conspiram contra a produtividade e o potencial de crescimento. Mas isso não pode ser feito de forma tópica, atabalhoadamente, sob pressão de grupos de interessse, ainda que parte destes tenha razão. É preferível tratar a matéria no contexto de uma reforma tributária digna desse nome. A propósito, a medida do governo em nada contribui para reduzir o manicômio tributário, pois focaliza um aspecto lateral e menos importante, qual seja o das relações federativas e não o da irracionalidade atual do ICMS.
É preciso serenidade, liderança e conhecimento adequado das consequências das medidas, principalmente de seus efeitos colaterais. Não é, infelizmente, o que se vê na ação do governo e na pressão para aprovar a mal estudada Resolução 72 do Senado.
Mantega venceu: o Brasil tem uma nova política econômica
No início do governo Dilma, parecia que haveria continuidade da política econômica herdada de seu antecessor, assim como Lula havia feito em relação à de FHC. De fato, reagindo ao excesso de crescimento de 2010 e aos seus efeitos na taxa de inflação, o governo anunciou um corte de R$ 50 bilhões nos gastos públicos (ainda que grande parte fosse mera redução de vento), O Banco Central aumentou a taxa de juros e baixou um conjunto das chamadas medidas prudenciais. Muitos analistas, inclusive este escriba, acreditaram na continuidade.
Essa percepção começou a mudar em agosto, quando o Banco Central, surpreendendo analistas e o mercado, reduziu a taxa de juros, sob a alegação de que se avizinhava uma grave crise na economia mundial, com efeitos desinflacionários no Brasil. Cabia, assim, interromper reduzir a taxa Selic (a maioria dos bancos centrais dos mercados emergentes preferiu fazer uma pausa no ciclo, esperando uma melhor definição do ambiente internacional, particularmente a evolução da crise da zona do euro).
Essa foi a primeira pista de que algo estava mudando. Os conhecidos críticos da política econômica começaram a comemorar o que lhes parecia uma guinada (e estavam certos, como se viu depois). Na última quarta-feira, o BC acelerou o ritmo de queda da Selic, sem razão aparente, surpreendendo novamente. Em agosto, a redução da Selic foi anunciada com um inédito e prolixo comunicado, que parecia pretender conquistar, para a tese do BC, os analistas que previam no máximo a manutenção da taxa. Agora, convicto do acerto de sua ação, o BC se limitou a um curto e hermético comunicado. Como o agravamento da crise mundial e seus efeitos desinflacionários não se confirmaram, o BC arranjou outra justificativa, a de que o PIB está crescendo abaixo do potencial (o que se sabia há muito tempo e é normal quando se combate os efeitos inflacionários de uma expansão excessiva).
A decisão do BC mostrou que estava em marcha a mudança da política econômica. O BC se alinhava aos objetivos do Ministério da Fazenda. Agora, a política monetária, posta a serviço dos desígnios do governo, busca atingir simultaneamente três objetivos: reduzir a taxa de juros real, promover a depreciação da taxa de câmbio e propiciar uma taxa de crescimento na linha anunciada pelo governo. É uma equação impossível. O regime de metas para a inflação foi abandonado e o governo parece contentar-se em alcançar o limite superior da meta (6,5%), embora o BC continue insistindo que busca o centro da meta (4,5%).
Assim, o tripé da política econômica – câmbio flutuante, metas para a inflação e superávits primários robustos -, que vigorou de 1999 a 2011, virou letra morta. Se havia dúvidas, o ministro da Fazenda as desfez em seu depoimento de ontem no Senado. Mantega deixou claro que a taxa de juros vai caminhar para o nível da TJLP, de 6% ao ano; avisou que o câmbio é administrado, indicando uma meta entre R$ 1,70 e R$ 1,90 por dólar. O ministro não titubeou. É ele quem dá as cartas da política monetária e cambial. O BC é mero coadjuvante, cumpridor de ordens. Ele promete manter uma das pontas do tripé, a do superávit primário, mas são crescentes as dúvidas quanto ao seu cumprimento em 2012.
Mantega vem sendo apoiado por muitos formadores de opinião, que têm cantado loas à mudança. Segundo um deles, a queda voluntarista da taxa de juros é a maior realização do governo Dilma. Mantega venceu. Tentou a guinada durante o governo Lula, mas se deparou com a liderança de Meirelles e o pragmatismo do presidente da República.
O ministro da Fazenda merece o benefício da dúvida. Pode ser que sua estratégia e a tomada de pulso da política econômica dêem certo. Infelizmente para ele, a experiência internacional, incluída a do Brasil, não autoriza esperar muito da novidade, na ausência de medidas estruturais para aumentar a produtividade (que requerem tempo e liderança política, ingredientes não disponíveis neste momento). Medidas pontuais e erráticas, que complementam a nova política econômica, continuam voltadas para a expansão da demanda. Isso impulsiona o crescimento, mas à custa da perda de competitividade da indústria, que assiste ao agravamento dos seus custos salariais (tem que competir com os serviços no mercado de mão-de-obra, que está aquecido), à piora do sistema tributário e à continuada deteriação da infraestrutura, além da valorização cambial. O excesso de demanda é suprido por importações.
Em algum momento, a nova política econômica pode ter de enfrentar dissabores, entre os quais a aceleração da inflação. O agravamento do déficit em transações correntes do balanço de pagamentos pode ser esquecido por um mercado complacente, principalmente enquanto houver financiamento amplo e barato nos mercados internacionais. Em algum momento, todavia, a nova política econômica poderá requerer uma revisão. Se continuar, os desequilíbrios se agravarão e começaremos a parecer com a Argentina. A reeleição de Dilma estaria ameaçada e os custos da reversão seriam muito elevados.
Mantega venceu, mas só o tempo dirá se ele vai comemorar o suposto acerto ou se será apontado como o culpado pelo fracasso da mudança e pelo desgaste da confiança no Banco Central, duramente conquistada nos últimos vinte anos. Veremos.
Por que petistas do governo falam de juros
Segundo o Estadão de hoje, o secretário de Assuntos Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, foi categórico: “vamos ter mais uma reunião do Copom, na qual vamos ter uma queda, moderada, mas vamos ter uma queda”. A presidente Dilma, que está na Alemanha, desautorizou o secretário. “Quem fala sobre juros no meu governo é o Banco Central. Nem eu nem ninguém no meu governo tem autorização para falar sobre juros”, sentenciou.
Na verdade, a própria presidente falou de juros mais de uma vez. Ministros já se pronunciaram sobre o assunto: Fernando Pimentel, Gilberto Carvalho e Guido Mantega. Isso não acontecia no governo Lula. A explicação está, a meu ver, na percepção de que o Banco Central, politicamente fraco, se subordina aos designios do governo. No período Lula, o presidente do BC, Henrique Meirelles, era mais respeitado. Além de sua autoridade pessoal, se notava que Lula o prestigiava e apoiava a ação do BC.
Os petistas que chegaram ao governo em 2003, à exceção de Antonio Palocci, eram contumazes críticos da política monetária. Tiveram que se conformar em ver o PT fazer o mesmo que eles condenavam, sem reconhecer a contribuição do BC para a credibilidade do governo e para o crescimento do período. Agora, sentem-se à vontade para sair da toca.
A presidente fez bem em desautorizar Garcia, mas enquanto persistir a percepção de fraqueza política do BC não será surpresa se novas manifestações surgirem sobre os juros. O que poderia por fim a esse ambiente seria uma ação mais drástica, como a demissão de loquazes ministros.