Archive for fevereiro, 2011

Como entender o ceticismo sobre o ajuste fiscal

Sem exceção, todos os analistas consideram positiva a decisão da presidente Dilma de autorizar um corte de gastos de R$ 50 bilhões. Na campanha eleitoral, ela negava a necessidade do ajuste. Foi uma corajosa mudança. Ao mesmo tempo, duvida-se da capacidade do seu governo de cumprir a meta. Em 1997, viveu-se situação semelhante, quando do anúncio das 51 medidas para enfrentar os efeitos da Crise Asiática (logo apelidadas jocosamente de “Pacote 51, uma boa ideia”). Naquela época, julgou-se o conjunto insuficiente. Agora não se acredita nos cortes prometidos.

A meu ver, a contradição atual se explica por dois motivos. Primeiro, o ministro da Fazenda encarregado de executar o programa de cortes é o mesmo que permitiu a expansão imoderada dos gastos nos últimos dois anos, particularmente durante o período eleitoral. Segundo, o ministro e seus auxiliares mais imediatos – o secretário executivo e o secretário do Tesouro Nacional – desconsideravam as críticas sobre a expansão fiscal. Alegavam que gastos públicos não causam inflação. Como esperar cortes de quem não acredita na medida?

Essa pergunta é mais relevante quando se considera que a realização do ajuste depende fundamentalmente da capacidade de resistir a pressões, por parte do ministro e daqueles seus auxiliares. Cabe lembrar que cortes de gastos no Brasil não são realizados mediante a revisão do Orçamento pelo Congresso, ao contrário do que aconteceu recentemente no Reino Unido, na Grécia, na Irlanda, em Portugal e na Espanha, onde os parlamentos aprovaram uma nova peça orçamentária. Por exemplo, uma dotação de um bilhão de euros é reduzida, digamos, para quinhentos milhões de euros. No Brasil, o Ministério do Planejamento prepara e o (a) chefe do governo aprova um “decreto de programação”, que estabelece limites para liberação das dotações orçamentárias. Assim, por exemplo, em uma dotação de um bilhão de reais o Tesouro somente liberará a metade. Adicionalmente, o Tesouro restringe liberações mediante o que se denomina “controle na boca do caixa”. Tudo isso gera distorções, mas costuma ser eficaz para seus objetivos, caso as autoridades não cedam a pressões. Os Ministérios e outros órgãos beneficiários das dotações sabem que elas continuam no Orçamento pelo mesmo valor. Basta descontingenciá-las e o dinheiro fluirá.

Um outro exemplo da era FHC foi o ajuste de 1998, que se seguiu à Crise Russa e ao acordo com o FMI. O governo divulgou um programa de ajuste fiscal com detalhes críveis. O ministro da Fazenda era Pedro Malan. Na secretaria executiva estava Amaury Bier e na Secretaria do Tesouro Nacional, Joaquim Levy. Os três acreditavam no papel do ajuste e se declaravam adeptos de sua realização. A credibilidade do programa se firmou.

Mantega e equipe podem vir a cumprir a meta que a presidente lhes determinou. Já fazem declarações sobre sua necessidade, o que é uma mudança importante. É preciso conceder-lhes o benefício da dúvida, mas eles têm que provar sua capacidade de resistir a pressões e de apresentar um detalhamento minimamente crível das medidas e de sua execução. Esperemos.

No salário mínimo, o papelão da oposição

Quem diria? A oposição ao governo Lula agiu como a oposição de Lula quando o PSDB e o PFL formavam a aliança governante dos tempos de FHC. Oportunismo puro. Demagogia inequívoca. Quem ficou do lado da austeridade, da preocupação com o futuro, foi justamente Dilma Roussef, ao não transigir sobre o valor do salário mínimo proposto, de R$ 545,00. Enquanto isso, o PSDB insistiu no valor de R$ 600,00, anunciado por Serra durante a campanha eleitoral, em uma tentativa populista, extremada e mal sucedida de angariar votos entre os pobres e aposentados. E o PFL se uniu ao peleguismo dos tempos de Lula, a Força Sindical, para secundar a demanda de Paulinho por um mínimo maior. Que decepção! O patético foi ouvir o líder do PSDB justificando os R$ 600,00 com o aumento da arrecadação do INSS. Mesmo que fosse o caso, esse aumento deveria servir para minimizar o grave déficit de caixa da Previdência.

De 1994 para cá, o salário mínimo subiu mais de 120% acima da inflação e agravou a situação da Previdência. Nesse período, tais gastos cresceram perto de 3% do PIB. Nenhum sistema previdênciário agüenta esse impacto sem sofrer sérios desequilíbrios. Os aumentos reais do mínimo não seriam tão graves se seu valor fosse desvinculado do piso previdenciário. Como está, o mínimo reajusta dois de cada três benefícios e afeta 40% dos gastos previdenciários. Com a desvinculação, seus efeitos, quando houvesse, seriam no mercado de trabalho, provocando desemprego. Menos mal.

No início dessa trajetória fiscalmente suicida, havia certa justificativa para os ganhos reais do mínimo, inclusive por seu papel na redução dos níveis de probreza. Não é mais o caso. Os reajustes do mínimo beneficiam hoje essencialmente aposentados, pensionistas e servidores públicos dos Estados e municípios. Aumentos reais do salário mínimo têm, pois, influência diminuta na redução da pobreza. Quase ninguém desses grupos pertencem a famílias pobres.

Como que cara o PSDB e o DEM irão às urnas de 2014? Como manter o voto dos que acreditavam na responsabilidade de seus líderes? Irão para a disputa presidencial como a roupagem do velho populismo ou buscarão restaurar os valores que permeavam o governo de FHC? No mínimo, já decepcionaram legiões de fieis eleitores.

Mantega deveria preocupar-se com a inflação e não com o pessimismo sobre a inflação

O ministro da Fazenda reagiu de forma estranha diante da inflação de janeiro, medida pelo IPCA e divulgada ontem pelo IBGE. Os preços avançaram 0,83%, o pior resultado desde abril 2005. Mantega se disse preocupado com o pessimismo que daí poderia se instalar. Na verdade, o ministro deveria ser preocupar com a inflação e não com o pessimismo dela decorrente. Em vez de tentar acalmar o distinto público com exortações ao bom comportamento, S.Exa. deveria afirmar que o ritmo de subida de preços o preocupa e por isso adotará medidas para evitar que a inflação fuja do controle.

Mantega continua a afirmar que os fatores determinantes da inflação são passageiros. Primeiro falou na alta de alimentos. Agora menciona transportes. Tudo isso é verdade, mas duas coisas deveriam chamar a atenção do ministro. Primeira, a alta de alimentos, que tudo indica vai perdurar por razões fora do controle do Brasil, pode contaminar outros preços. Segundo, há sinais inequívocos de inflação de demanda pelo lado dos serviços, que subiram 7,88% em doze meses, segundo a mesma divulgação do IBGE.

É correto buscar influenciar expectativas, mas não com declarações como as do ministro. Uma forma adequada de proceder, no seu caso, seria anunciar medidas críveis, que tornem inequívoca a reversão da deterioração fiscal dos últimos dois anos do governo Lula, quando Mantega estava no mesmo cargo. Assim, a política fiscal reforçaria o arsenal da política monetária. A taxa de juros poderia subir menos.

O governo promete divulgar cortes ainda hoje. Vamos dar o benefício da dúvida e esperar.

O imbroglio do salário mínimo é uma das más heranças de Lula

As discussões sobre o novo salário mínimo têm de tudo: ameaças bobas do ministro da Fazenda ao Congresso, caso este aumente o valor decidido pelo governo; arrogância do deputado Paulinho, da Força Sindical, “exigindo” um valor de pelo menos R$ 580,00 (acima dos R$ 545,00 oficiais); e demagogia do PSDB, que é favorável a um mínimo de R$ 600,00, sem explicar de onde viria o dinheiro adicional para a Previdência.

Falta, no imbróglio, lembrar mais uma das más heranças de Lula para sua sucessora. Nessa questão, Lula criou a ideia de que o mínimo deve sempre ter reajustes reais generosos. É o que ele fez quando estava lá. A política adotada seria um mal menor se o mínimo afetasse apenas o mercado de trabalho. Acontece que seu valor é base para reajuste do piso previdenciário. De cada três benefícios, dois seguem o salário mínimo, que influencia 40% dos gastos previdenciários. No governo Lula, esses gastos cresceram 1% do PIB. Não há paralelo de tamanha generosidade com o dinheiro do contribuinte em apenas oito anos. O acréscimo de despesa é, em termos proporcionais, a metade dos gastos previdenciários totais da China (2% do PIB). Considere, além disso, que o PIB cresceu 37% no período e terá uma ideia do impacto da era Lula nas finanças da Previdência.

Além disso, Lula criou uma novidade, a negociação do mínimo com as centrais sindicais. Não tem lógica, a não ser a de prestigiar as centrais e cooptá-las para apoio ao governo. Negociações salariais se justificam entre empregados e empregadores e não entre o governo e sindicalistas para fixar o salário mínimo. Este deve ser calculado em bases técnicas, com metodologia transparente. Pior ainda é ver as centrais se arvorando o papel de representar os aposentados. Em lugar nenhum os aposentados precisam de líderes sindicais para negociar seus benefícios. Resultado: o governo sempre terá que ceder alguma coisa e aumentar ainda mais o salário mínimo em termos reais. É completamente suicida. Em 2010, o Brasil gastou 12% do PIB com aposentadorias e pensões, incluindo os servidores públicos. É o dobro da média mundial. Aproxima-se da situação de países europeus com participação elevada de idosos, geralmente duas vezes a do Brasil.

O leitor dificilmente encontrará um aposentado do INSS contente com o que recebe. Ele sempre dirá que contribuiu 35 anos ou mais e tem uma porcaria de aposentadoria. A única verdade é o número de anos de contribuição. Mas isso não pode garantir uma aposentadoria generosa, que deveria ser proporcional às contribuições, caso adotássemos o regime de capitalização. O método de repartição em vigor, pelo qual as gerações atuais pagam as aposentadorias das gerações passadas, dá menos razão ao reclamante. Como o brasileiro vive cada vez após a aposentadoria e nasce cada vez menos, estamos criando uma bomba a explodir no futuro. Os aumentos reais do salário mínimo amplificam o problema.

O mínimo que se deveria fazer para resolver esse efeito do salário mínimo nas contas públicas seria desvinculá-lo do piso previdenciário. No passado, seria uma negociação política com o Congresso, em que poderiam valer argumentos racionais. Agora, as centrais entrarão no jogo, com outros argumentos. O que já era difícil fica quase impossível. Que Deus nos proteja.

Dilma no Congresso: três promessas, três dificuldades

Em mais um bom exemplo, Dilma compareceu hoje ao Congresso para transmitir pessoalmente a mensagem anual do presidente. Ao que me lembro, é a primeira vez que isso ocorre. É uma demonstração inequívoca de apreço e certamente fará escola. As intenções manifestadas no discurso foram muito boas, malgrado o cacoete de atribuir ao governo Lula a exclusividade pelos avanços sociais do Brasil.

A fala presidencial incluiu três promessas que merecerão aplausos, mas dificilmente se realizarão. A primeira é a de promover uma reforma política, que ganhou palmas entusiasmadas dos parlamentares. A tarefa é gigantesca. A experiência mostra que reformas políticas acontecem quando os parlamentares se sentem melhor no futuro do que no atual regime politico-eleitoral. Qualquer proposta de reforma digna desse nome implicará o desaparecimento da maioria dos partidos. Restarão uns cinco efetivamente relevantes. A reforma estará inevitalmente concentrada em mudar a forma de eleger deputados e vereadores. Dificilmente se construirá o consenso necessário. Veremos.

A segunda promessa foi a da reforma tributária. Pode ser que haja um avanço aqui e outro acolá, mas não uma reforma efetiva, que mude a estrutura dos tributos, elimine o caos atual e nos legue um sistema racional. Qualquer reforma para valer implicará a reformulação ampla do ICMS, de preferência a junção de todas as incidências sobre o consumo em um IVA nacional, cobrado pelo governo federal e distribuído automaticamente com os Estados e municípios. Isso é impossível sem a concordância dos governadores e eles serão contra qualquer mudança que elimine seu poder de alterar o ICMS, subir e baixar alíquotas, criar regimes tributários, conceder incentivos fiscais, aumentar o campo da substituição tributária e assim por diante. Nem mesmo a desoneração dos investimentos, aparentemente uma parte fácil do processo, poderá ocorrer sem a concordância deles. O principal tributo sobre os investimentos é o ICMS.

A terceira promessa é investir em infraestrutura, particularmente nos aeroportos. Essa é viável, pois há recursos privados disponíveis e apetite para investir na área. Ocorre que sua concretização exigirá o abandono de visões ideológicas sobre privatização, particularmente sobre a concessão de serviços públicos de transporte e energia. É preciso criar marcos regulatórios geradores de confiança para os investidores. Será preciso abandonar o modelo de “modicidade tarifária”, que exige pesados subsídios via empréstimos do BNDES ou inibem a realização de investimentos pelos concessionários da área de transporte.

Em resumo, é preciso ver para crer.