Mantega venceu: o Brasil tem uma nova política econômica

No início do governo Dilma, parecia que haveria continuidade da política econômica herdada de seu antecessor, assim como Lula havia feito em relação à de FHC. De fato, reagindo ao excesso de crescimento de 2010 e aos seus efeitos na taxa de inflação, o governo anunciou um corte de R$ 50 bilhões nos gastos públicos (ainda que grande parte fosse mera redução de vento), O Banco Central aumentou a taxa de juros e baixou um conjunto das chamadas medidas prudenciais. Muitos analistas, inclusive este escriba, acreditaram na continuidade.

Essa percepção começou a mudar em agosto, quando o Banco Central, surpreendendo analistas e o mercado, reduziu a taxa de juros, sob a alegação de que se avizinhava uma grave crise na economia mundial, com efeitos desinflacionários no Brasil. Cabia, assim, interromper reduzir a taxa Selic (a maioria dos bancos centrais dos mercados emergentes preferiu fazer uma pausa no ciclo, esperando uma melhor definição do ambiente internacional, particularmente a evolução da crise da zona do euro).

Essa foi a primeira pista de que algo estava mudando. Os conhecidos críticos da política econômica começaram a comemorar o que lhes parecia uma guinada (e estavam certos, como se viu depois). Na última quarta-feira, o BC acelerou o ritmo de queda da Selic, sem razão aparente, surpreendendo novamente. Em agosto, a redução da Selic foi anunciada com um inédito e prolixo comunicado, que parecia pretender conquistar, para a tese do BC, os analistas que previam no máximo a manutenção da taxa. Agora, convicto do acerto de sua ação, o BC se limitou a um curto e hermético comunicado. Como o agravamento da crise mundial e seus efeitos desinflacionários não se confirmaram, o BC arranjou outra justificativa, a de que o PIB está crescendo abaixo do potencial (o que se sabia há muito tempo e é normal quando se combate os efeitos inflacionários de uma expansão excessiva).

A decisão do BC mostrou que estava em marcha a mudança da política econômica. O BC se alinhava aos objetivos do Ministério da Fazenda. Agora, a política monetária, posta a serviço dos desígnios do governo, busca atingir simultaneamente três objetivos: reduzir a taxa de juros real, promover a depreciação da taxa de câmbio e propiciar uma taxa de crescimento na linha anunciada pelo governo. É uma equação impossível. O regime de metas para a inflação foi abandonado e o governo parece contentar-se em alcançar o limite superior da meta (6,5%), embora o BC continue insistindo que busca o centro da meta (4,5%).

Assim, o tripé da política econômica – câmbio flutuante, metas para a inflação e superávits primários robustos -, que vigorou de 1999 a 2011, virou letra morta. Se havia dúvidas, o ministro da Fazenda as desfez em seu depoimento de ontem no Senado. Mantega deixou claro que a taxa de juros vai caminhar para o nível da TJLP, de 6% ao ano; avisou que o câmbio é administrado, indicando uma meta entre R$ 1,70 e R$ 1,90 por dólar. O ministro não titubeou. É ele quem dá as cartas da política monetária e cambial. O BC é mero coadjuvante, cumpridor de ordens. Ele promete manter uma das pontas do tripé, a do superávit primário, mas são crescentes as dúvidas quanto ao seu cumprimento em 2012.

Mantega vem sendo apoiado por muitos formadores de opinião, que têm cantado loas à mudança. Segundo um deles, a queda voluntarista da taxa de juros é a maior realização do governo Dilma. Mantega venceu. Tentou a guinada durante o governo Lula, mas se deparou com a liderança de Meirelles e o pragmatismo do presidente da República.

O ministro da Fazenda merece o benefício da dúvida. Pode ser que sua estratégia e a tomada de pulso da política econômica dêem certo. Infelizmente para ele, a experiência internacional, incluída a do Brasil, não autoriza esperar muito da novidade, na ausência de medidas estruturais para aumentar a produtividade (que requerem tempo e liderança política, ingredientes não disponíveis neste momento). Medidas pontuais e erráticas, que complementam a nova política econômica, continuam voltadas para a expansão da demanda. Isso impulsiona o crescimento, mas à custa da perda de competitividade da indústria, que assiste ao agravamento dos seus custos salariais (tem que competir com os serviços no mercado de mão-de-obra, que está aquecido), à piora do sistema tributário e à continuada deteriação da infraestrutura, além da valorização cambial. O excesso de demanda é suprido por importações.

Em algum momento, a nova política econômica pode ter de enfrentar dissabores, entre os quais a aceleração da inflação. O agravamento do déficit em transações correntes do balanço de pagamentos pode ser esquecido por um mercado complacente, principalmente enquanto houver financiamento amplo e barato nos mercados internacionais. Em algum momento, todavia, a nova política econômica poderá requerer uma revisão. Se continuar, os desequilíbrios se agravarão e começaremos a parecer com a Argentina. A reeleição de Dilma estaria ameaçada e os custos da reversão seriam muito elevados.

Mantega venceu, mas só o tempo dirá se ele vai comemorar o suposto acerto ou se será apontado como o culpado pelo fracasso da mudança e pelo desgaste da confiança no Banco Central, duramente conquistada nos últimos vinte anos. Veremos.

Por que petistas do governo falam de juros

Segundo o Estadão de hoje, o secretário de Assuntos Internacionais da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, foi categórico: “vamos ter mais uma reunião do Copom, na qual vamos ter uma queda, moderada, mas vamos ter uma queda”. A presidente Dilma, que está na Alemanha, desautorizou o secretário. “Quem fala sobre juros no meu governo é o Banco Central. Nem eu nem ninguém no meu governo tem autorização para falar sobre juros”, sentenciou.

Na verdade, a própria presidente falou de juros mais de uma vez. Ministros já se pronunciaram sobre o assunto: Fernando Pimentel, Gilberto Carvalho e Guido Mantega. Isso não acontecia no governo Lula. A explicação está, a meu ver, na percepção de que o Banco Central, politicamente fraco, se subordina aos designios do governo. No período Lula, o presidente do BC, Henrique Meirelles, era mais respeitado. Além de sua autoridade pessoal, se notava que Lula o prestigiava e apoiava a ação do BC.

Os petistas que chegaram ao governo em 2003, à exceção de Antonio Palocci, eram contumazes críticos da política monetária. Tiveram que se conformar em ver o PT fazer o mesmo que eles condenavam, sem reconhecer a contribuição do BC para a credibilidade do governo e para o crescimento do período. Agora, sentem-se à vontade para sair da toca.

A presidente fez bem em desautorizar Garcia, mas enquanto persistir a percepção de fraqueza política do BC não será surpresa se novas manifestações surgirem sobre os juros. O que poderia por fim a esse ambiente seria uma ação mais drástica, como a demissão de loquazes ministros.

O Ipea a serviço de um partido político

Acumulam-se sinais de que o Ipea perdeu sua neutralidade técnica e está a serviço do governo e do endeusamento de suas ações. É o que se vê dos resultados da pesquisa sobre a qualidade de vida das famílias brasileiras. Na maioria das unidades da Federação, segundo o Instituto, houve melhora de 10% entre 2003 e 2009. O estudo foi feito com base nos dados do PNAD, do IBGE, para o mesmo período.

Claro, temos que comemorar os resultados, que indicam melhoras expressivas do acesso da população a postos de trabalho e ganhos de renda. Causa estranheza, todavia, o foco no período 2003-2009. Não por coincindência, é a época do governo Lula (os dados de 2010 não estão disponíveis, mas se estivessem o estudo cobriria precisamente os dois mandatos do ex-presidente). Estudos desse tipo não costumam fazer cortes relativos a determinados governos. O correto é adotar períodos de uma ou mais décadas, independentemente de se referirem a distintas administrações. O Ipea poderia ter incluído os anos de 2001 e 2002, mesmo que dissessem respeito ao governo FHC, pois a PNAD foi a campo nesses anos e os dados estão à disposição de quem quiser analisá-los.

O Ipea nunca foi assim. Criado no regime militar, seu fundador, o ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso, sempre velou pela independência técnica do Instituto. São conhecidos os casos de estudos que criticaram a política econômica e o endividamento externo do período autoritário, como os desenvolvidos por Pedro Malan nos anos 1970. Agora, a impressão é a de que o Ipea se tornou um braço do governo, a postos para realçar seus supostos feitos. Além disso, diferentemente do seu passado, o Ipea passou a incorporar a ideologia nos processos de seleção e recrutamento de seus técnicos. No seu último concurso, os testes demandavam alinhamento dos candidatos às visões de mundo do governo e de certos segmentos da esquerda. É uma pena.

O estudo do Ipea está no Comunicado n° 131, que pode ser acessado no endereço http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/120117_comunicadoipea131.pdf

O que está por trás da demissão do diretor-geral do Dnocs

A saída de Elias Fernandes do cargo de diretor-geral do Dnocs foi uma decisão tomada pela presidente Dilma depois que o líder do PMDB na Câmara, Henrique Eduardo Alves, disse que ela não ousaria dispensá-lo e assim desgostar o grande partido de sua base parlamentar. Se Dilma aceitasse o ultimato de Alves teria renunciado à sua autoridade e se tornaria refém do partido. É incrível que um parlamentar tão experiente tenha cometido semelhante infantilidade.

O diretor-geral do Dnocs teria sido demitido por dois outros motivos: suspeitas de corrupção em obras e favorecimento ao seu estado natal, o Rio Grande do Norte, na destinação de verbas geridas pelo órgão. Esqueçamos a corrupção, que Fernandes nega e se tornou corriqueira na gestão petista, em número e gravidade superiores aos de governos passados. Vejamos o segundo motivo.

O diretor-geral do Dnocs não é primeiro, nem será o último dos administradores públicos brasileiros a privilegiar sua região no manejo de verbas orçamentárias. Tal atitude é inerente a uma cultura que vê como natural esse tipo de manipulação. Se alguém galga um posto que comanda verbas, seu papel não é administrar em favor do bem comum, mas de seu torrão natal. Lembre-se que o ministro da Integração Nacional gastou em seu Estado, Pernambuco, 90% das verbas destinadas a emergências. Recebeu apoio de políticos pernambucanos, que o elogiaram pela atitude. Esse tipo de ação acontece em outros países, inclusive os desenvolvidos, mas dificilmente na extensão que se observa por aqui.

Privilegiar a terra natal é muito mais fácil no Brasil, onde vigora a interpretação estapafúrdia de que o Orçamento é autorizativo. Isso não tem justificativa histórica nem constitucional, mas é aceito por parlamentares, pela imprensa e por bons comentaristas. Ora, se é autorizativo, o administrador público pode agir como quiser. Ele pode não executar a dotação orçamentária objeto de contigenciamentos e liberar a de seu interesse. O favorecimento gera apoio eleitoral para o partido e para os políticos locais. E não raro “otras cositas más”.

Em um sistema orçamentário decente, a dotação orçamentária é discutida publicamente, aprovada pelo Parlamento e rigorosamente cumprida. Aqui, acontece somente a aprovação do Congresso, o que nada significa, pois o Poder Executivo cummpre o que lhe der na telha.

Cultura de favorecimento com o uso de verbas públicas e atraso institucional no Orçamento explicam a atitude do diretor-geral do Dnocs e do líder do PMDB. Sua saída, infelizmente, se deu por outros motivos.

Cade: o preconceito contra o setor privado

No governo desde 2003, o PT perdeu muito de suas visões anticapitalistas, de seus institutos intervencionistas e de seus preconceitos contra o setor privado. Lula manteve a política econômica que condenava, não reverteu as privatizações que abominava e preservou muito da cultura de austeridade , incluindo a Lei de Responsabilidade Fiscal, que o PT rejeitou em peso no Congresso e questionou no Judiciário.

Aqui e acolá, entretanto, o antigo DNA prevalece. É o caso recente de medidas protecionistas e das invectivas contra a taxa de juros. O preconceito contra o setor privado está presente na indicações para a diretoria do Banco Central, em que houve veto a pelo menos um nome de pessoa oriunda de um banco privado. Pela primeira vez em sua história, o BC não tem um nome sequer com origem no sistema financeiro.

Esse mesmo preconceito vai prevalecer nas indicações para o órgão de defesa da concorrência, o Cade. Segundo notícia de hoje no Estadão, a presidente Dilma não vai indicar profissionais que tenham trabalhado no setor privado. Segundo o jornal, “o objetivo é cortar o elo entre governo e mercado”. Advogados de escritórios privados, prossegue a notícia, seriam vistos pelo governo como pessoas que “já fizeram uma opção profissional ao escolherem o lado de lá do balcão e que é complicada a transição para o governo com a possibilidade de um retorno ao setor privado”.

A ideologia atuará contra a eficiência do governo e a melhoria do processo decisório. É típico de país subdesenvolvido. Países como os Estados Unidos e o Reino Unido estimulam a atração de pessoas do setor privado a participar temporariamente do governo. O Banco da Inglaterra tem um programa de troca de profissionais dos dois setores. Nos Estados Unidos, existem regras sobre o trânsito de profissionais do setor privado por órgãos públicos, a chamada política de “revolving door” (porta rotativa). A expectativa é que essas pessoas entrem e saiam do governo mais de uma vez. O importante é fixar regras para evitar tráfico de influência, conflitos de interesse e a captura de reguladores pelos setores regulados, incluindo normas estabelecendo prazo para o retorno às atividades privadas (quarentena).

Com a extensão, para o Cade, do veto a pessoas do setor privado que já vigora no Banco Central, o governo perde a oportunidade de aproveitar a experiência desses profissionais. Cria feudos para funcionários públicos, que terminam envolvidos por essa cultura estúpida e evitam contatos com outros profissionais. O preconceito termina transitando para as decisões, o que prejudica o funcionamento das agências reguladoras e da economia. Unanimidades inconvenientes passam a ser a tônica do processo decisório. Por exemplo, as decisões do Copom da época Dilma são tomadas por unanimidade em praticamente todas as reuniões, uma prova da inexistência de divergências, que são salutares em qualquer processo decisório. É difícil encontrar tal situação em bancos centrais de países avançados.

O governo e o Brasil nada ganham com esse tipo de preconceito.

A reforma ministerial de Dilma tende a decepcionar

O governo criou uma expectativa exagerada sobre uma possível reforma ministerial, que aconteceria no começo deste ano. Gerou-se a percepção de que Dilma constituiria um ministério mais do seu jeito do que do de Lula, que teve indisfarçável influência na escolha de ministros e na manutenção de outros em seus postos. Os mais otimistas chegaram a pensar que haveria um enxugamento do número de pastas, hoje beirando aos exagerados 40 ministérios.

Acontece que reformas ministeriais costumam ser tarefa complexa no Brasil. É preciso conciliar distintas demandas, duas das quais estão sempre presentes, quais sejam a federativa e a política. A primeira implica levar em conta a origem estadual dos ministros, para evitar o desequilíbrios regionais (seria impensável um ministério sem paulistas, cariocas, mineiros, gaúchos, nordestinos…). A segunda requer o atendimento de pressões dos partidos políticos por cargos. Nos governos do PT, esta última demanda se acentuou, seja por parte de sindicalistas ávidos por postos no governo, seja por líderes que enxergam o cargo ministerial como meio para nomear afilhados e para gerar recursos (nem sempre lícitos) para seus partidos.

Dilma tem três dificuldades adicionais para reformar o ministério; (1) não parecer que sua “nova” equipe é diferente da de Lula, seu padrinho político; (2) evitar descontentamentos na gorda base de apoio no Congresso, que compreende nada menos do que 14 partidos políticos. Cabe lembrar a declaração do senador Valdir Raupp, de que o PMDB está “subavaliado” no ministério, e o apoio ostensivo do governador de Pernambuco, Eduardo Campos, do PSB, para segurar no cargo o ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, acusado de beneficiar excessivamente o seu Estado com verbas da pasta (90% do total); (3) não perder apoio de segmentos do empresariado que se sentem atendidos em suas demandas particulares de ser representados no ministério (uma característica adicional de nosso sistema político). Empresários já protestaram oficialmente contra a suposta extinção da Secretaria dos Portos, que tem status de ministério.

Como se vê, não vai dar para soltar foguetão quando a reforma ministerial for anunciada (se é que vai). Tudo indica que o ministério de Dilma não será distinto do atual, seja em tamanho, seja em qualidade.

Meta para a inflação de 2011: o relevante não é se o BC a cumpriu

Nesta sexta-feira, o IBGE anunciará o IPCA de dezembro. A Tendências projeta alta de 0,55%, o que elevará a inflação do ano para 6,56%. O anúncio será seguido de discussões sobre se o BC cumpriu ou não a meta para a inflação, que é de 4,5% com tolerância de dois pontos percentuais para mais ou para menos. O ministro Mantega disse que a meta será considerada cumprida se o IPCA for de até 6,5%, dado o critério aceito de arrendondamento, pelo qual a inflação teria sido de 6,5%.

Na minha opinião, o critério de arredondamento não se aplica nesse caso. Qualquer número acima de 6,5% significará que a meta não terá sido cumprida. O problema é que o BC teria que enviar uma carta ao ministro, fornecendo suas justificativas. Nada de mais. Acontece que o governo resolveu levar o assunto mais a sério do que deveria. Garantiu, juntamente com o BC, que eram amplas as chances de cumprimento da meta. O mundo não cairia se ela não fosse cumprida, mas a Fazenda fez o que pôde manipulando o índice de inflação. Adiou, para 2012, a entrada em vigor do aumento do IPI sobre cigarros, baixou a CIDE sobre a gasolina para evitar o aumento dos seus preços e deixou para o próximo ano o reajuste de tarifas de telefones.

Na verdade, saber se cumpriu ou não a meta por conta de alguns décimos a mais não é o mais relevante. O importante é saber que temos uma inflação muito alta para os padrões que têm prevalecido no mundo dos anos 1990 para cá. A meta de 4,5% é uma das mais altas. Nos mercados emergentes, o mais comum é 3%. Os governos do PT mantiveram essa meta por nove anos consecutivos. E tudo indica que a inflação ficará descolada do centro da meta durante todo o governo Dilma. A justificativa para essa tolerância com inflação, totalmente furada, é a de que isso permitiria trabalhar com uma taxa de juros mais baixa.

No fundo, temos um governo mais tolerante à inflação, que elegeu o crescimento como meta. Há quem diga que isso é certo, que uma taxa de inflação de 6% a 7% é funcional, que é preciso crescer e criar empregos, e por aí afora. Esse filme é conhecido e seu desfecho costuma ser desastroso. O país ainda vai pagar um preço alto por essa tolerância.

Dilma e Mantega dão o tom: meta de crescimento e comando do BC

Duas declarações de hoje mostram a estratégia do governo, que põe em risco o regime de metas para a inflação adotado, com sucesso, desde 1999 e mantido nos oito anos do período Lula. Agora, a meta é de crescimento e não de inflação. A presidente anunciou a meta para 2012: 5% do PIB, em encontro com jornalistas em Brasília. Claro, Dilma não enxergou risco de descontrole inflacionário, mas dificilmente o país crescerá tanto quanto ela quer, a não ser que adote medidas de expansão da demanda incompatíveis com o cumprimento da meta de inflação, que é de 4,5%, podendo elevar-se até 6,5%.

Enquanto isso, em São Paulo, o ministro Guido Mantega disse que o “governo” vai perseguir uma redução da taxa de juros real em 2012. Para o ministro, portanto, o Banco Central deixou de ser um órgão de Estado e passou a funcionar segundo os designios do governo. Pode não ser assim. Pode ser que Mantega, em ato falho, tenha revelado mais seus desejos do que os compromissos do governo em preservar a autonomia operacional do BC, que foram assegurados pelo seu presidente, Alexandre Tombini, em entrevista recente à revista Veja.

Em países estáveis, que dispõem de instituições sólidas, o Banco Central é um órgão do Estado, isto é, não está subordinado aos interesses políticos do governo de turno. Sua missão fundamental é assegurar a estabilidade da moeda e do sistema financeiro. Para tanto, deve ter a capacidade de tomar decisões para cumprir sua missão, independentemente de pressões políticas e de interesses eleitorais. Se o BC não tem autonomia, pode receber ordens do governo para conduzir uma política monetária que atenda objetivos de curto prazo. A experiência mostra, todavia, que isso gera crescimento insustentável, que desagua em alta inflação.

Felizmente, mesmo que Dilma e Mantega se mantenham firmes em seus propósitos, o BC tenderá a reagir se a inflação começar a fugir do controle. Estará em jogo a reputação do BC e de seus diretores. Se por acaso o BC for impedido de agir, com substituição de seus diretores por outros submissos aos objetivos do governo, a inflação – que se tornou muito impopular no Brasil – minará a popularidade da presidente e de seu governo. Neste caso, a presdiente e o ministro seriam obrigados a apoiar ações para por a estabilidade nos trilhos, ainda que a muito custo para a sociedade. Rezemos para que nunhum nem outro estejam falando a sério.

Dilma subverte a hierarquia

A presidente Dilma criou fama de “gerentona”, isto é, de executiva que distribui tarefas, cobra responsabilidades e não tolera a ineficiência. O jornal “O Globo” de hoje traz uma matéria que realça esse comportamento. Segundo a reportagem, Dilma despacha diretamente com subordinados de ministros. Seria uma forma de contornar o inconveniente de não ter podido escolher o ministério dos seus sonhos, “por pressões dos partidos aliados e do ex-presidente Lula”. O jornal informa que Dilma teria criado uma “República dos vice-ministros”. Assim, “com perfil técnico e estilo centralizador, Dilma despacha diretamente com secretários-executivos de várias pastas, tomando decisões à revelia dos ministros. Em pelo menos meia dúzia de ministérios, a relação mais constante da presidente é com os subs”. O secretário-executivo mais requisitado seria o da Fazenda, Nelson Barbosa, que segundo O Globo era o preferido dela para assumir a pasta, não fosse a pressão de Lula para manter o ministro Mantega.

Muitos valorizam esse estilo de Dilma, que a diferenciaria do antecessor e lhe daria melhores condições de administrar o país. Não penso assim. Suas qualidades são elogiáveis, mas são outros os requisitos para bem exercer a chefia do governo. Para enfrentar os enormes desafios do cargo, o fundamental é a liderança e não o pendor para cuidar de detalhes, assenhorar-se do andamento de projetos ou controlar pessoalmente a execução de encargos. Dilma precisa ser a regente de uma orquestra e não a afinadora dos instrumentos. Precisa fazer-se respeitar por sua capacidade de estabelecer estratégias e liderar a adoção de medidas de grande envergadura. Ela se impõe aos subordinados ao administrar o dia a dia e ser implacável nas cobranças. Acontece que ao se envolver com controles e o acompanhamento de tudo Dilma desperdiça tempo que deveria se melhor utilizado na articulação política e na interlocução com líderes do Congresso e da sociedade.

Administrar mediante o relacionamento direto com subordinados de ministros é subverter a hierarquia, que é essencial para o bom funcionamento de qualquer organização. Observar a hierarquia é mais importante no governo do que nas organização privadas, pois no setor público é maior o potencial de conflitos, decorrente das disputas por posições e poder. No Brasil, esse aspecto adquire maior relevância, haja vista que a formação do governo costuma exigir coalizões amplas, não raramente constituídas de partidos antagônicos.

A subversão da hierarquia contribui para criar insatisfações, gerar desencontros de orientação e despertar ciúmes, que são prejudiciais ao bom andamento dos serviços e ao cumprimento de deveres e responsabilidades do cargo de presidente da República. A subversão da hierarquia distorce lealdades e constitui mau exemplo para toda a cadeia de comando dos ministérios e demais órgãos e entidades da administração pública. Os “eleitos” podem sentir-se seguros para tomar iniciativas que não lhes são próprias, emitir ordens sem deter a correspondente autoridade e até mesmo usar esse “status” para invadir a competência de outras áreas do governo. O resultado é a ampliação dos conflitos e a redução da efidiência que se espera da administração.

Em resumo, ao administrar o governo por canais informais, a presidente Dilma pode criar desconfianças, promover atritos e gerar desperdícios que podem prejudicar sua ação como chefe do governo.

A incrível fraude no Ministerio das Cidades

A fraude no Ministério das Cidades, escancarada pelo Estadão, mostra a que ponto chegou a degradação da administração pública federal. O ilícito é consequência direta do loteamento político dos cargos do governo federal, que permite a pessoas sem a qualificação adequada, moral e técnica, ascender a postos de destaque nos órgãos do governo. Como se viu, um parecer técnico objetou a mudança de projeto associado às obras da Copa do Mundo em Cuiabá (MT). De um corredor para ônibus, o projeto passaria a contemplar uma linha de Veículos Leves sobre Trilhos (VLT), cujo custo passaria de pouco menos de R$ 500 milhões para cerca de 1,2 bilhão, ou R$ 700 milhoes a mais.

O governador do Estado pressionou diferentes áreas do governo federal para obter a aprovação da substituição. Falou com a presidente Dilma, o vice-presidente Temer, a chefe da Casa Civil, ministra Gleisi Hoffmann, e, claro, o ministro da Cidades, Mário Negromente. Até aí, nada de mais. Pressões desse tipo sempre existiram e existirão, aqui e alhures. A decisão política de atender o governador também está conforme práticas de governo, mais aqui do que lá fora, mas nada escandaloso.

Acontece que atender o pedido implicaria rever o parecer técnico constante do respectivo processo. Seria necessário aduzir argumentos capazes de levar o funcionário de carreira a rever a posição externada ou contestá-la. Quem já labutou no governo sabe que esse tipo de procedimento é normal, pois nenhuma opinião pode ser considerada definitiva. A parte interessada, no caso o governo do Mato Grosso, tinha legitimidade para solicitar a revisão. Se, todavia, tais argumentos não existissem, deveria prevalecer a posição inicial, que ademais era respaldada por ponto de vista semelhante, externado pelo Controladoria Geral da União.

De acordo com documentos e gravações a que o jornal teve acesso, dirigentes do Ministério das Cidades tentaram primeiramente forçar o servidor a mudar o parecer, o que em si já seria grave. Diante da recusa, poderiam ter optado por buscar justificativas que viabilizassem a decisão política ou mostrassem a impossibilidade de atendimento do pedido do governador. Em vez disso, fraudaram o processo, substituindo o parecer por outro em conformidade com a decisão política. A responsável pela manobra declarou que o parecer deveria refletir a opinião do governo e não a do funcionário. Inacreditável.

O parecer fraudado serviria também para fazer prova perante o Ministério Público em Cuiabá, um agravante do caso. O ministro das Cidades prometeu uma sindincância interna para apurar a suspeita de fraude . Espera-se que a investigação não seja apenas para constar, nem que, eventualmente comprovada a denúnica, o malfeito fique impune.