O governo opta por mais inflação, embora diga o contrário

Desde o segundo mandato do presidente Lula, o governo tem-se mostrado menos comprometido com uma inflação baixa. Parece concordar com certos economistas brasileiros, para os quais uma inflação entre 5% e 7% é conveniente para o funcionamento da economia, embora a tese esteja por ser provada. Essa visão – ou uma variante dela – se tornou aceita depois da saída do ministro da Fazenda Antonio Palocci, em 2007. A ideia não avançou porque o presidente do Banco Central Henrique Meirelles jamais a aceitou. Como Meirelles tinha reputação, credibilidade e prestígio perante Lula, foi possível resistir às tentativas do novo ministro da Fazenda de impor essa ideia. Mesmo assim, ele conseguiu bloquear propostas para reduzir a meta de 4,5% para a inflação. Versões não desmentidas informam que Guido Mantega tramou – sem sucesso, como se sabe – a demissão de Meirelles e sua substituição pelo economista Luiz Gonzaga Beluzzo, que supostamente mudaria a política monetária.

Agora, a tese ganhou mais robustez. Mantega continuou no posto e Meirelles foi substituído. Fala-se agora em harmonia entre a Fazenda e o BC. A percepção entre os observadores é a de que a nova diretoria do BC é mais condescente com a inflação. Pode não ser isso, mas é a impressão que se generaliza. A presidente Dilma parece ter aderido à tese. Ela tem repetido seu compromisso com a estabilidade, mas suas declarações recentes mostram que não é bem assim. A estabilidade é desejável, na visão da chefe do governo, se não “derrubar” o crescimento. Em entrevista semana passada a cinco jornalistas, Dilma declarou que “não queremos inflação sob controle com crescimento zero da economia”, para em seguida concluir: “”estamos fazendo o chamado pouso suave, com uma taxa de crescimento e de emprego adequadas”. Como se sabe, o certo é trabalhar com o chamado “balanço de riscos”. Se o risco for para a inflação, aumenta-se a taxa de juros. Faz-se o contrário se for para o crescimento.

O “pouso suave” deve ser o objetivo de qualquer governo depois que a economia passa por um nível de crescimento insustentável e isso resulta em subida perigosa da inflação. É o que aconteceu em 2010, quando razões político-eleitorais levaram o governo a patrocinar um aquecimento excessivo da economia, via gastos públicos, crédito oficial e uma interrupção prematura do ciclo de política monetária em setembro. O PIB cresceu 7,5%, acima de seu potencial, e Lula elegeu sua sucessora, mas o efeito inflacionário da festa logo se manifestou. O IPCA de 2010, de 5,9%, ficou muito acima do centro da meta, de 4,5%. Em tais circunstãncias, cabe “esticar” a trajetória de convergência da inflação para a meta. É natural que se faça isso em dois anos e não em um exercício apenas.

O problema é que o governo não se tem mostrado suficientemente vigoroso no sentido de trazer de volta a inflação para 4,5% em 2012. O superávit primário tem estado acima da meta, mas isso deve mais a um amento de arrecadação do que à redução de gastos. As receitas federais cresceram mais de 20% no primeiro semestre. As despesas continuam aumentando em ritmo superior ao da expansão da economia: cerca de 11% nos seis primeiros meses deste ano. São pouquíssimos os analistas que acreditam nas afirmações do BC, de que a inflação do próximo ano convergirá para os 4,5%. Nós da Tendências achamos que pode bater nos 6,6% em 2011, superando o limite superior da meta (6,5%). Para 2012, projetamos IPCA de 5,2%, com viés de alta.

A presidente e o ministro da Fazenda juram que não aceitarão inflação mais alta. Suas crenças, ações e declarações vão, todavia, em sentido contrário. Recentemente, vimos a manutenção, pelo nono ano consecutivo, da meta de 4,5% para 2013. O Brasil é um dos poucos países em desenvolvimento que adota esse nível. O mais comum é 3%. No Peru é 2%, semelhante à meta dos países desenvolvidos. A justificativa por aqui tem sido a de que uma meta mais baixa requer juros mais altos. A experiência mostra que os agentes econômicos adaptam suas expectativas à meta. Mantê-la em 4,5% pode requerer juros mais altos ao longo do tempo e não o contrário.

Em resumo, o governo assume o risco de produzir inflação mais alta do que pensa. O Banco Central pode minar a reputação que construiu duramente nas duas últimas décadas. Tudo indica que o BC, formado por gente racional e cioso de sua missão de manter uma inflação baixa e estável, agirá se seus prognósticos não se confirmarem. A dúvida é como reagirá a presidente e o ministro da Fazenda. Aceitarão que o Comitê de Política Monetária seja mais duro? Afinal, gente do governo acredita numa tolice, a de que o mercado financeiro superestima suas estimativas de inflação para forçar o BC a aumentar os juros. Isso foi dito claramente por um funcionário graduado do Ipea semana passada. Levantamento recente mostrou que ocorre o contrário, isto é, os bancos têm subestimado o comportamento da inflação. Além disso, para eles, ao contrário do senso comum, é melhor que juros sejam mais baixos. Como ganham o spread (diferença entre o que cobram dos tomadores de crédito e o que pagam aos investidores), seus lucros aumentam quando as taxas de juros baixam, pois emprestam mais com menores riscos de atraso e calote no pagamento dos empréstimos.

Felizmente, estamos longe do risco de perda de controle da inflação, mas poderemos pagar um preço mais alto por não atacarmos o mal como deveríamos. Se o governo estiver errado, será preciso elevar mais os juros, malgrado as resistências internas. A economia crescerá menos.

O Peru pode vencer a barreira do populismo

Ollanta Humala, o novo presidente do Peru, atemorizava os mercados em eleições passadas. Com um discurso populista e socialista à la Hugo Chávez, da Venezuela, Ollanta flertava com o desastre econômico, social e político. Os avanços das duas últimas décadas, principalmente a conquista da estabilidade macroeconômica, que fizeram do Peru uma das economias de maior crescimento da América Latina, podiam ser perdidos. O país retornaria aos tempos de instabilidade política e econômica.

Ollanta podia ganhar as eleições presidenciais se a centro-direita peruano se dividisse. Dado que ainda são altos os níveis de pobreza e as desiguldades de renda, um discurso populista poderia arrebanhar votos dos segmentos menos favorecidos e menos informados da sociedade, permitindo que Ollanta ganhasse as eleições ou disputasse o segundo turno com chances de vitória. E foi o que aconteceu este ano. Três candidatos da centro-direita dividiram seus votos. O segundo turno se deu entre dois políticos tidos como problemáticos: Ollanta e Keiko Fugimori, a filha do ex-presidente Alberto Fujimori, condenado por corrupção e violação de direitos humanos. Na declaração pessimista do escritor peruano Vargas Llosa, os peruanos iriam escolher entre a aids e o câncer. Vargas Llosa terminou apoiando Ollanta, inclusive porque este se comprometeu com ideias como a de proteção aos direitos de propriedade e aos contratos, fundamentais para o desenvolvimento capitalista.

Ao sentir que eram crescentes suas chances de vitória, Ollanta adotou atitudes semelhantes às de Lula em 2002. Fez até uma “carta ao povo peruano”, inspirada em documento semelhante que Lula lançou em junho de 2002. Ao se eleger, reiterou juras à responsabilidade na gestão macroeconômica. Declarou que manteria a autonomia operacional do Banco Central. Sua primeira viagem internacional teve o Brasil como primeira parada, onde ele repetiu os compromissos com a normalidade econômica.

Agora, Ollanta acaba de divulgar seu ministério. Salomon Lerner Ghitis, empresário que coordenou sua campanha, será o primeiro ministro. Luís Miguel Castilla será o ministro da Fazenda. Castilla, de 42 anos, é um economista ortodoxo, que exerceu o cargo de vice-ministro das Finanças no governo anterior, de Alan Garcia. Obteve o doutorado em Economia na Universidade Johns Hopkins em 2001. Estudou na Universidade Harvard e na Universidade McGill.

Os sinais de amadurecimento de Ollanta são claros. Seus compromissos com a uma política econômica responsável estão sendo comprovados. O novo presidente peruano dificilmente promoverá a ruptura que se temia. Seu país, rico de recursos minerais e de pesca, pode continuar sua trajetória de prosperidade, deixando para trás, talvez para sempre, o populsimo desastroso do passado.

Chávez já não é o mentor político de Ollanta, que se livrou dos assessores de esquerda, inclusive os que o ajudaram na campanha eleitoral. O Peru pode ser mais um país latino-americano a se livrar do populismo inconsequente e desastroso.

A desoneração da folha pode piorar a situação

Essa história de desonerar a folha de salários parece coisa mal estudada, ainda que faça sentido para muita gente. Uma coisa é reduzir os exageros das contribuições sobre a folha de salários, cujo nível dificilmente tem paralelo no mundo. Penduraram na folha, ao longo de décadas, um monte de encargos que pouco ou nada têm a ver com o mundo da Previdência. Outra coisa, bem difrerente, é conseguir isso sem criar problemas colaterais mais graves. Vejamos nove dos muitos argumentos contrários à medida.

Primeiro, não é possível simplesmente eliminar a contribuição patronal ou outras cobradas na folha sem criar algo em seu lugar. Se a Previdência perder a respectiva arrecadação, o déficit do sistema, já grave, vai piorar. As contas públicas se deteriorariam mais. Não há saída pelo corte de despesas, dada a rigidez orçamentária brasileira. O governo está felizmente de acordo com este argumento.

Segundo, a ideia que circula no governo é ruim, isto é, substituir as contribuições por um novo imposto sobre o consumo, principalmente se a nova incidência for em cascata ou penalizar umas atividades mais do que outras. Os bancos seriam um dos alvos. Cobrar mais de bancos é simpático para a opinião pública, mas aumentará a taxa de juros para os tomadores finais. Ao contrário do que muitos pensam, os bancos repassam esses custos para frente, como qualquer empresa que paga tributos, particularmente os que incidem sobre o consumo.

Terceiro, a mudança penalizará proporcionalmente mais as empresas intensivas em tecnologia e beneficiará as intensivas em mão-de-obra. Pode criar sérios desequilíbrios econômicos e retirar a competitividade precisamente dos segmentos que adotam tecnologia mais avançada. Pior para o país.

Quarto, corre-se o risco de o governo cobrar mais do que o necessário para compensar a perda. De propósito ou por medo de errar, o pessoal da Receita tende a colocar uma robusta margem de segurança. Isso aconteceu com a Cofins, quando esta contribuição passou a ser cobrada pelo método do valor agregado. A arrecadação disparou, aumentando a carga tributária.

Quinto, essa ideia de substituir contribuições sobre a folha por um imposto sobre o consumo vem sendo discutida, em distintos períodos de governo, desde os anos 1970. Alguém arrisca dizer por que nunca avançou? Acertou quem disse que são muitos os riscos de uma piora geral, ainda que beneficie alguns segmentos.

Sexto, todos os países cobram a contribuição previdenciária sobre a folha de salários e não via impostos sobre vendas. Na folha, o potencial de sonegação é infinitamente menor do que no consumo. A única alternativa de sonegar na folha é manter os trabalhadores na informalidade, o que é cada vez mais difícil.

Sétimo, não dá para desonerar apenas um setor, a indústria, como parece ser a ideia do governo. Os demais entrarão na Justiça e provavelmente conseguirão a isonomia de tratamento. A margem de segurança calculada pela Receita iria para o brejo. Teria que haver um aumento da alíquota, o que agravaria os problemas da substituição.

Oitavo, até aqui não vi um estudo abalizado do governo mostrando os prós e os contras da proposta. Tudo que vazou até agora parece ter vindo de muitos lados, menos o da Receita Federal. Provavelmente os técnicos da Receita vão levantar argumentos para fulminar a ideia. O risco é o governo passar por cima de tudo e ir avante de forma voluntarista e irresponsável.

Nono, o governo faria melhor se examinasse a eliminação dos penduricalhos que pesam sobre a folha, deixando lá apenas o que faz sentido, isto é, a contribuição dos trabalhadores e empregadores, destinada a financiar a Previdência.

Se estes argumentos forem procedentes, como parece, basta o governo considerar alguns deles para desistir logo da sua idéia.

Faz falta um orçamento impositivo

A recente confusão em torno da liberação de recursos para as emendas parlamentares foi mais uma demonstração de atraso político e institucional em área crucial para o funcionamento do governo e da democracia. Mostrou também a capacidade do ministro da Fazenda de se meter em trapalhadas. Como se recorda, a presidente decidiu prorrogar a utilização de certos “restos a pagar” que incluíam emendas, cuja utilização vencia em 30 de junho passado. Acontece que o loquaz ministro (palavras de editorial do Estadão da semana passada) avisou que novas liberações ficariam bloqueadas por 90 dias, o que revoltou deputados e senadores. O ministro foi desmentido e a base se acalmou.

Isso acontece por causa de duas disfunções do sistema orçamentário e político do Brasil. A primeira é a aceitação da ideia de que o orçamento é “autorizativo”, isto é, o governo pode decidir não gastar o que não for obrigatório por lei, tais como despesas de pessoal, pagamento de pensões e aposentadorias, transferências constitucionais a Estados e municípios e outros semelhantes. A segunda é a utilização de emendas parlamentares como instrumento de barganha política entre o Executivo e o Legislativo.

Embora seja comum entre jornalistas, analistas e observadores, falar em orçamento “autorizativo” é uma aberração que não tem base histórica nem institucional. A aprovação do orçamento público pelo Parlamento é uma conquista construída ao longo de séculos de resistência ao absolutismo dos reis. Foi a forma de impor controles sobre os monarcas e retirar-lhe o poder de gastar a seu talante (normalmente para conduzir guerras). Sua contrapartida natural é a limitação do poder do rei para criar e impor tributos à sociedade. O orçamento é, pois, uma lei. Ao Poder Executivo não assiste o direito de decidir o que cumprir.

O artigo 165, § 8º, da Constituição diz que “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa”. A despesa é, pois, “fixa”. O que se “estima” é a receita. O legislador usou dois verbos exatamente para diferenciar os dois atos, o de gastar (obrigatório) e o de arrecadar (estimativo). O orçamento é, assim, impositivo, como acontece nas democracias modernas, particularmente dos países desenvolvidos. Dar ao Executivo o poder de comandar a despesa é voltar aos tempos medievais, como temos feito desde priscas eras. Infelizmente, a desinformação e a ignorância da História leva os próprios parlamentares a declarar que o orçamento é “autorizativo”. O conceito equivocado se firmou.

É verdade que poderia ser um desastre cumprir a lei orçamentária. O Congresso costuma superestimar a receita para abrigar emendas parlamentares. Desse modo, haveria uma expansão irresponsável dos gastos se o orçamento fosse cumprido. Há, felizmente, formas de obviar esse problema, já testadas em outros países. Na Alemanha, a estimativa do orçamento é feita por consultorias independentes. Nos Estados Unidos, o Congresso tem um órgão independente, o Congressional Budget Office, que faz sérias, responsáveis e acuradas estimativas da receita. No Brasil, poder-se-ia deixar a tarefa a uma comissão mista de técnicos do Executivo e do Congresso (que tem gente muito qualificada nessa área).

O orçamento impositivo poderia gerar outro problema. E se a receita não se comportasse conforme o previsto? Nesse caso, a Lei de Responsabilidade Fiscal já estabelece regras para ajustar a despesa à receita. Talvez fosse preciso mudar essa lei para estabelecer que a mudança deveria ser previamente aprovada pelo Congresso, sob rito sumário.

Com o orçamento impositivo, as emendas parlamentares seriam liberadas automaticamente, obedecendo apenas a um cronograma que levasse em conta o comportamento da receita e a necessidade de distribuir as liberações ao longo do exercício fiscal. As emendas perderiam a perversa de servir como instrumento de barganha. Hoje, os deputados chantageiam o Executivo caso os respectivos recursos não sejam liberados, ameaçando não votar projetos de interesse do governo ou votar a favor de projetos irresponsáveis (caso atual da emenda que equipara os salários das polícias e dos bombeiros de todo país aos dos seus congêneres de Brasília).

A qualidade da gestão pública e da democracia melhorariam substancialmente se a lei orçamentária fosse cumprida, com os cuidados aqui mencionados. As emendas parlamentares, que são comuns em todos os parlamentos, poderiam ser mais bem valorizadas.

Impressões de visita à Russia

Eu e minha família acabamos de retornar de uma vista de uma semana a Moscou e São Petersburgo. É muito pouco para fazer reflexões profundas baseadas apenas na observação desses dias, nas informações dos guias turísticos e nos fragmentos de história russa que aprendemos nas escolas e nas leituras posteriores. Mesmo assim, vou ousar.

As duas cidades surpreendem pela riqueza de seus palácios, museus, teatros, universidades, centros de pesquisa tecnológica e assim por diante. É uma mostra inequívoca de seu passado. Contamos com três guias russos com excelente português e todos professores universitários. Eles nos ajudaram a entender mais da história russa. A União Soviética preparou pessoas para servir à KGB, o serviço secreto, como tradutores. Viraram guias. Não sabemos se era o caso dos nossos.

O Império Russo anterior ao regime soviético era industrializado, rico, opulento, esplendoroso. As visitas ao incrível museu Ermitage, em São Petersburgo, ou ao museu de jóias da Coroa, no Kremlin, em Moscou, constituem prova irrefutável. Moscou possuía mais de mil belas igrejas ortodoxas. O regime comunista destruiu 400, mas as que ficaram refletem a capacidade econômica e financeira do país ao longo de sua evolução, particularmente a partir dos séculos XVI e XVII.

Nos seculos XVIII e XIX, a Rússia rivalizava, em poderio econômico e militar, com as potências mais relevantes da Europa, particularmente a França e o Império Austro-Húngaro. A Inglaterra emergia por força da Revolução Industrial. Segundo os guias, a riqueza das obras de arte do Ermitage perde apenas para a do Louvre, de Paris. Existem apenas doze quadros de Leonardo da Vinci, dois deles no Ermitage, cujas obras dos impressionistas são superadas, em quantidade, apenas pelos existentes no respectivo museu parisiense.

A Rússia era também um país brutalmente desigual. Com um estado forte, mas sem um adequado Estado de Direito e accountability (prestação de contas à sociedade), o Império dependia dos czares e dos êxitos nas guerras de defesa ou de conquista, que eram as características da época. O último dos Romanovs, o Czar Nicolau II, parece ter sido um desastre. O país perdeu sucessivas guerras em seu período e se engajou na I Guerra Mundial. O rápido empobrecimento agravou as condições sociais. O país experimentou uma situação de fome coletiva. A situação política se tornou insustentável.

Nicolau II foi forçado a abdicar do trono em fevereiro de 1917, após revoltas em várias partes do país e por pressão da burguesia. Kerenski assumiu o poder. Negociava-se uma constituição republicana que poderia ter levado a Rússia a restaurar o desenvolvimento e rivalizar com as potências européias atuais e até mesmo com os Estados Unidos. Infelizmente, em outubro do mesmo ano os comunistas derrubaram o governo e assumiram o poder. A guerra civil que se sucedeu os confirmou no domínio do país e lhes permitiu implantar o regime comunista.

Nossa impressão foi a de que o comunismo interrompeu a ascenção da Rússia. Ao contrário do que diz a propaganda, os feitos da União Soviética se nutriram do passado russo, inclusive de sua avançada educação. A Universidade de Moscou é de 1755 e já havia instituições de pesquisa avançada. O comunismmo desviou essa herança (que não foi maldita) para o campo bélico e mais tarde para a corrida espacial. Sem os incentivos à inovação, típicos do sistema capitalista, a União Soviética caminhou para a estagnação dos anos 1970 em diante, que selou a sorte do regime comunista, dada a perda de legitimidade perante seus cidadãos. A repressão se acentou como forma de manter obediiência e lealdade ao regime. Excluídos os aspectos autoritários, lembrei-me de um certo presidente brasileiro, para quem a história teria começado com ele e “nunca antes” se teria feito algo em proveito do país.

A Rússia está em plena transição. O colapso do comunismo vai completar apenas 20 anos. Parece um milagre ver o país funcionando, os shopping centers, os restaurantes, a vida noturna, os modernos aeroportos, os monumentos reconstruídos, as estradas das regiões que visitamos. Passou a integrar o grupo dos países mais ricos, o G7 que virou G-8. Isso aconteceu mais para prestigiar o país e evitar seu colapso e o retorno ao comunismo, e não por sua pujança econômica. Há muita corrupção. A economia depende fundamentalmente do petróleo e do gás, principalmente para as exportações. As instituições econômicas ainda estão em formação. O poder discricionário do Estado é brutal. Direitos de propriedade não são plenos. Há problemas étnicos graves, motivadores de movimentos separatistas. Enfim, muitas incertezas e enormes desafios.

Nada garante que a transição se complete de forma bem sucedida, permitindo à Rússia recuperar o terreno perdido com o regime comunista. Pelo que vi, ainda que superficialmente, o país tem tudo para se tornar uma nação plenamente desenvolvida. O futuro dirá, obviamente.

O PT continua sem entender a política monetária

Vejam a declaração feita hoje (3/6) pelo ministro Fernando Pimentel, do Desenvolvimento: “Como ministro da Indústria, acho que não precisa mais de alta de juros. Mas essa é uma questão do Banco Central”. Incrível, mas comum nos governos do PT.

O PT nunca engoliu a política econômica e tem dificuldade em entender como funciona a ação do Banco Central. Como se recorda, sua plataforma nas eleições de 2002 tinha como título “uma ruptura necessária”. Propunha uma mudança radical da política econômica, tida como “neoliberal”. Cheia de equívocos e movida por visões ideológicas, a plataforma promoveria um desastre de proporções chavistas. A intuição de Lula evitou que as bobagens tivessem curso. Decidiu-se manter a política econômica herdada de FHC, um pouco mais dura, para enfrentar tanto os resquícios de dúvidas quanto à linha do novo governo, quanto a inflação, que havia subido por conta da depreciação cambial e da deterioração das expectativas diante da vitória eleitoral do PT.

Pragmático, Lula manteve a política econômica, mas o PT jamais se conformou em ter visto seu programa ir para o lixo. Um de seus autores, o atual ministro da Fazenda, sempre foi um dos não-conformados. E continua tentando uma guinada na política econômica.

A declaração do ministro do Desenvolvimento é uma externalização dessa realidade. Em um governo pautado pela harmonia de seus componentes e por uma liderança forte, seria demitido. Onde já se viu um ministro externar opinião pessoal sobre a política monetária? Óbvio, o ministro permanecerá no governo. Primeiro, porque os mercados não ligarão para o que disse. Acostumaram-se a ouvir petistas falarem coisas semelhantes e nada acontecer. Segundo, porque os governos do PT toleram dualidades como esta, que em última análise representa uma crítica à presidente Dilma. Afinal, ela declarou várias vezes que o Banco Central é autônomo para conduzir a política monetária. Se o ministro discorda do BC, sua fala confronta a da presidente.

A Grécia não fugirá do calote

A dívida pública da Grécia se aproxima de 150% do PIB. É uma situação de insolvência. Servir uma dívida dessa magnitude em ambiente de estagnação econômica não é sustentável política, social nem financeiramente. Em algum momento, será preciso perdoar uma parte substancial. O calote é inevitável e virá mais cedo que se imagina.

A Grécia vive uma situação semelhante à da América Latina dos anos 1980. Também naquela época, taxas de juros relativamente baixas e facilidades de financiamento externo permitiram que os países da região embarcassem em amplos programas de investimento (e às vezes de consumo puro e simples), financiando-os com dívida externa. Com a parada brusca dos empréstimos externos em 1982, esses países ficaram insolventes. Precisavam se ajustar, mediante cortes de gastos e outras medidas. Os bancos também tinham que pagar o preço pela ressaca da festa de empréstimos, mas não estavam preparados para o perdão de parte de seus créditos. Era preciso tempo para os dois lados. No caso dos países, para promover dolorosas reformas. No caso dos bancos, para acumular reservas e provisões e assim conceder o desconto sem risco de quebrar. Quem acompanhou a saga das negociações e renegociações dos anos 1980 com os bancos e o FMI se lembrará do quanto foi difícil para todos. Em 1989, veio a solução com o Plano Brady. Os bancos concederam desconto de 35% (alguns tinham perdido muito mais, acima do dobro desse percentual, vendendo seus créditos no mercado secundário).

A crise grega é semelhante com duas fortes diferenças. Primeira, A Grécia é membro de um clube de ricos, que tem interesse em preservar o processo de integração econômica e evitar riscos de colapso da moeda única, o euro. A Grécia não teve, em momento algum, de suspender o pagamento de suas dívidas, como o fizeram os latino-americanos várias vezes. Um pacote de assistência costurado pela União Européia e pelo FMI supriu o país de recursos externos, na expectativa de que em algum momento os mercados voltariam a financiá-lo (o que não aconteceu). A segunda diferença está no campo político. Parece impossível sustentar anos de cortes de gastos e benefícios sociais, como ocorreu na América Latina. A Grécia é democrática, o que permite à sociedade organizada protestar contra as medidas e pressionar por soluções distintas das que vêm sendo adotadas. Na América Latina, praticamente todos os países estavam sob autoritarismo nos anos 1980, o que inibia esses movimentos. Na verdade, a crise acelerou a perda de legitimidade dos regimes militares.

Paolo Manasse mostrou enm artigo recente (www.voxeu.org/index.php?q=node/6553) como é inviável o ajuste prometido pela Grécia. Seria preciso que o país saísse de um déficit fiscal de 5% do PIB para um superávit de 7,5%, ou seja, um ajuste de 12,5% do PIB. Se feito em um ano, seria inviável politicamente. Se feito ao longo de anos, não resolveria o problema de insolvência. Se fosse concedido um desconto de 40% na dívida, a Grécia precisaria de um superávit primário de 4% do PIB, o que em tese seria viável, mas à custa de um monumental corte de gastos. A solução mágica seria a Grécia voltar a crescer. Esta seria, diz Manasse, a opção realista para evitar o calote. Se o crescimento fosse restabelecido, digamos à taxa anual de 1%, o superávit primário necessário cairia para 1,3% do PIB. Ninguém acredita nisso. Assim, a saída inevitável parece ser a do desconto, que se calcula precise ser de pelo menos 50% para a dívida se tornar sustentável e a Grécia renovar esperanças de voltar a crescer.

A taxa de juros dos papéis gregos bateu em 16,8% na semana passada, mais de duas vezes o nível de um ano atrás. Não há saída fora do desconto, mas, como na América Latina, os credores não estariam preparados para registrar as perdas, por não disporem de provisões e reservas em seus balanços. Haveria o risco de quebras. Assim, para obviar o problema, os bancos teriam que ser capitalizados pelos governos de seus respectivos países, que passariam a ser seus sócios. Em vez de desembolsar recursos para rolar as dívidas da Grécia, comprariam ações dessas instituições financeiras. Não vai ser fácil. Aqui e acolá a situação grega, pela qual também passarão Portugal e Irlanda (e talvez, teme-se, a Espanha e a Itália), ainda pode causar muitos sustos e turbulências nos mercados. Cedo ou tarde, contudo, o calote se imporá.

Palocci deve sobreviver à notícia da Folha sobre aumento de seu patrimônio

É pouco provável que o ministro Palocci perca o cargo por conta da reportagem da Folha de S. Paulo deste domingo, segundo a qual seu patrimônio aumentou 20 vezes entre 2006 e 2010, quando era deputado federal. Mais parece coisa de briga interna no PT do que um escândalo político fundamentado.

A matéria tem por base o contrato social e respectivas alterações da empresa de consultoria que ele fundou e da qual detém 99,9% do capital. Essa empresa registra dois imóveis em São Paulo, avaliados no total em mais de R$ 7 milhões. Palocci havia declarado, em 2006, patrimônio inferior a R$ 400 mil.

Acontece que Palocci fez tudo às claras. Registrou os imóveis na empresa, declarou seu patrimônio ao Imposto de Renda e informou os órgãos do governo, antes de assumir, que possuía a empresa. Às vésperas de assumir a Casa Civil, mudou o objeto social da consultoria, que passou a ser o da administração de seus dois imóveis. Evitava, assim, o conflito de interesse entre a atividade de consultoria econômica e o exercício do cargo.

Palocci é um sujeito experiente. Dificilmente cairia na bobeira de deixar tudo tão transparente se não tivesse seguro de que poderia provar a origem de seus ganhos. O noticiário destaca que ele se recusou a citar as empresas que seriam seus clientes. Embora isso possa ser visto com desconfiança, é assim que funciona. As empresas de consultoria não divulgam a lista de seus clientes, a menos que por eles autorizadas.

Em resumo, a menos que apareça algo realmente cabeludo, Palocci deve sobreviver à notícia. Fora o constrangimento natural em casos como esse, nada do que foi até agora divulgado é capaz de atingi-lo politicamente. Vale repetir, mas parece coisa de briga interna. Não é de hoje que facções internas do PT lutam para comer o fígado de seus adversários. E Palocci não é benquisto por algumas dessas facções.

Inflação: a volta dos velhos e imprestáveis remédios

Nos tempos da inflação crônica e fora de controle, o governo lançava mão do que podia. O objetivo não era vencer o mal, mas evitar que piorasse. A partir da segunda metade dos anos 1970, os preços subiam sempre, cada vez mais, por uma combinação de inflação crônica e indexação ampla de preços, salários e contratos. Era a chamada inércia inflacionária, que foi enfrentada sem sucesso com cinco congelamentos de preços e salárinos, e somente seria resolvida com a engenhosidade do Plano Real e da formação de condições internas e externas inexistentes nos planos anteriores.

Nessa época, a necessidade de agir sobre as expectativas levava o governo a usar exortações nas conversas com empresários. Adicionalmente, controlava com mão de ferro os preços dos bens e serviços produzidos pelas empresas estatais: gasolina, diesel, energia, telecomunicações, produtos siderúrgicos, água, esgotos, correios e por aí afora. Pedia-se que os empresários não repassassem custos aos preços ou que segurassem reajustes. A eficácia do apelo era praticamente nulo, por razões óbvias, mas se ganhava destaque no noticiário.

Pois o atual governo começa a lançar mão desses mecanismos em um contexto radicalmente distinto. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, em reunião com empresários de São Paulo, pediu para que eles não repassassem custos aos preços. Os empresários devem ter ouvido, ficado surpresos e esqueceram do pedido. O ministro de Minas e Energia agora ameaça reduzir preços da BR, a subsidiária da Petrobrás que tem uma de postos de gasolina e diesel. Pode?

O controle de preços das estatais gerou sérias consequencias no passado. Já os apelos ao patriotismo dos empresários, mesmo que ineficazes, faziam sentido em outra situação. Impressiona, assim, ver a amnésia dominar mentes em Brasília. O sinal é péssimo. Ou o governo tem dúvida de sua ação antiinflacionária – considerada insuficiente por muitos analistas, inclusive este escriba – ou se curva a instintos intervencionistas, movido pelo medo de que seus críticos estejam certos.

BC continua assumindo riscos excessivos (ao contrário do que pensei)

Como muitos, impressionei-me com o discurso feito em Washington pelo presidente do BC, no último dia 15. Ele reiterou o compromisso com a estabilidade monetária e disse que ainda estávamos no meio do ciclo de política monetária. O discurso foi capa de todos os grandes jornais no dia seguiinte. Eu embarquei na onda e incluí um novo comentário neste blog, assinalando que havia uma reserva de racionalidade no BC. Puro engano. Já na segunda-feira, uma “fonte” do governo na mesma cidade americana informava que todos tinham feito uma leitura errada do discurso de Alexandre Tombini. Mandou que se lesse novamente o Relatório de Inflação, no qual as autoridades monetárias se mostravam pouco preocupadas com o ritmo da inflação e se diziam convencidas de já terem adotado as medidas necessárias (afirmação da qual discorda a maioria dos analistas, inclusive este escriba)

A decisão do Comitê de Política Monetária da última quarta-feira veio mostrar que a “fonte” estava correta. O BC continua firme nas suas crenças. Ao contrário do que esperavam todas as consultorias e muitos bancos – uma elevação de 50 pontos na taxa Selic – o Copom subiu apenas 25 pontos. Em vez de reagir com rigor à evidente aceleração da inflação, reduziu o ritmo de ajuste da Selic. Alegou incertezas do cenário internacional e sobre o ritmo da atividade econômica doméstica. Nem ligou para a inequívoca deterioração das expectativas. Parece dar razão a analistas e gente do governo, para os quais essa deterioração esconderia um estratagema do mercado financeiro para forçar a subida dos juros. Isso é pura bobagem, como assinalou Affonso Pastore no seu excelente artigo de hoje no Estadão, mas é aceita por muitos, inclusive alguns acadêmicos, como se existisse um ser celeste que coordenasse as ações desse suposto cartel.

Seja como for, é surpreendente a ação do BC. Dá a impressão de que perdeu a autonomia construída a duras penas nos últimos 20 anos e se atrelou às visões “desenvolvimentistas” da Fazenda. Sinaliza que prefere mirar uma taxa mínima de crescimento do PIB, mesmo sob o risco de não cumprir a meta para a inflação deste ano, de 4.5%. A propósito, se confirmada a projeção da Tendências para o IPCA em 2001, a meta foi para o brejo. A estimativa foi revista recentemente para 6,6% (o limite superior da meta é 6,5%). O risco é o de ampliação do grau de indexação, tornando a inflação rígida para baixo. O próprio governo contribui para isso, pois já fixou o nível de reajuste do salário mínimo do próximo ano, que deverá ficar em 14%. O custo de recuperar a credibilidade do BC e fazer a inflação convergir de novo para a meta seria enorme. Pode resultar em baixo crescimento em 2011 e 2012. E se o governo, particularmente o Ministério da Fazenda, reagir mal a essa realidade, como tem feito ultimamente, um novo risco pode surgir, agora para o governo: o de perda das eleições presidenciais de 2014, que para Lula não existe. Segundo ele, Dilma vai ser reeleita e o PT ficará pelo menos 20 anos no poder.

Na ata da reunião do Copom, a ser divulgada na próxima quinta-feira, o BC deve dizer por que age assim. Pode confirmar a percepção de que trilha um caminho temerário. Ou convencer a maioria dos analistas de que o erro é deles. Torçamos para que o BC esteja correto.