A DRU e a liberdade de gastar: uma interpretação equivocada
Está prestes a ser aprovada a emenda constitucional que prorroga a vigência da DRU – Desvinculação de Receitas da União – para o período 2012-2015. A oposição demanda apenas que se reduza o prazo da prorrogação, de quatro para dois anos, o que dificilmente acontecerá. A emenda, como se recorda, libera 20% de certas vinculações de receitas a despesas. Os recursos poderão ser utilizados em diferentes dotações orçamentárias.
Na mídia, repete-se que a medida permitirá ao governo “gastar livremente os recursos”. A interpretação, equivocada, mostra o quanto nós brasileiros ignoramos o processo orçamentário. Na verdade, o governo não gasta livremente em nenhum caso. Toda e qualquer dotação orçamentária requer aprovação legislativa. Mesmo nos regimes autoritários, de Vargas e dos militares, o Executivo sempre dependeu da aprovação do Orçamento pelo Congresso, ainda que meramente formal.
A supremacia do Parlamento em questões orçamentárias nasceu com a Revolução Gloriosa inglesa (1688) e depois se espalhou mundo afora. A aprovação anual do Orçamento se tornou um dos principais atos do Parlamento e contribuiu decisivamente para o fim do absolutismo inglês. A relevância do Orçamento está no fato de por ele passarem todas as políticas públicas que requeiram a aplicação de recursos do contribuinte. É nele que se definem as prioridades do país. A partir de sua instituição, os monarcas ingleses perderam o poder de declarar guerra a seu bel prazer.
O Orçamento é a principal lei votada anualmente pelo Parlamento, que só entra em recesso depois da respectiva decisão. Esta é a razão pela qual o exercício fiscal inglês (e de resto todo o Hemisfério Norte) começa nas proximidades do verão. Os parlamentares só podem entrar em recesso e sair de férias com a família depois de aprová-lo. O exercício fiscal no Hemisfério Sul coincide com o ano calendário porque o verão começa no fim de dezembro.
Em Portugal, o absolutismo sobreviveu até o início do século XX. Lá, prevalecia o patrimonialismo, pelo qual as posses do rei se confundiam com o Orçamento, o qual tinha pouca ou nenhuma importância. O rei gastava como queria, para si e para o reino. Aí está, talvez, a pouca importância que damos ao Orçamento. Na Inglaterra, até hoje, existe um ritual para a apresentação do Orçamento. O Chancellor of the Exchequer (o ministro da Fazenda) caminha a pé de sua residência oficial na Downing Street, a poucas quadras do Parlamento, para apresentar a proposta. É seguido por um batalhão de jornalistas. O tema domina o noticiário e os debates por alguns dias. Aqui, o Orçamento é enviado pelo mesmo mensageiro que leva outros documentos ao Congresso. Às vezes ganha uma primeira página. Não é incomum que a aprovação passe em brancas nuvens.
A aprovação da DRU libera recursos, mas quem aprova sua destinação é o Congresso, ainda que este não preste atenção, a não ser que os parlamentares enxerguem na medida uma chance de aprovar emendas orçamentárias de propósito paroquial. Afinal, raros são os nossos congressistas que entendem o valor do Orçamento, menos ainda suas raízes históricas.
No governo, participei de esforços para mudar esse quadro. Com as reformas introduzidas entre 1986 e 1987, incluindo o fim da “conta de movimento” do Banco do Brasil, todas as receitas e despesas públicas devem ser autorizadas pelo Congresso. Antes, o Conselho Monetário tinha o poder de determinar gastos. Menos mal. Quem sabe um dia a gente valoriza o Orçamento e aprende que o Executivo não gasta como lhe aprouver?