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Economia

27 de jul de 2011 , 17h14

Orçamento atrasado

Orçamento atrasado

Duas crises recentes envolveram emendas parlamentares ao orçamento da União. Na primeira, aliados do governo obtiveram o desbloqueio dos recursos sob a ameaça de votar a favor de projetos que arrebentam as finanças públicas. Na segunda, emendas fizeram parte do escândalo no Ministério dos Transportes.

Na raiz desses eventos está o atraso institucional do orçamento, incluindo a ideia de que ele é “autorizativo”. Por aí, o governo poderia gastar apenas o que fosse obrigatório: pessoal, Previdência, transferências constitucionais a estados e municípios, educação e saúde. O resto ficaria a seu critério. Não há base para essa interpretação.

Pela Constituição (artigo 165, parágrafo 8º), “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (grifos meus). Os dois substantivos diferenciam os atos de arrecadar (estimativo) e gastar (obrigatório). O orçamento é uma lei e como tal deveria ser cumprido.

O processo orçamentário contemporâneo nasceu de longa evolução, que limitou o poder dos reis absolutistas da Europa, de tributar a seu talante e de gastar como lhe aprouvesse, sobretudo para fazer guerras. Os oito séculos de feudalismo criaram bolsões de forte resistência ao autoritarismo da monarquia.

Os barões feudais ingleses impuserem ao rei João Sem Terra a Carta Magna (1215). A aprovação de tributos passou a depender da aprovação de uma assembleia de nobres e bispos. Caía um dos maiores poderes discricionários do monarca. Para muitos autores, o feudalismo, ao confrontar o absolutismo, lançou alicerces da democracia moderna.

O aparecimento das cidades e a expansão do comércio internacional criaram novas forças políticas e interesses a defender. No século XVI, ideias de pensadores como Hobbes e Locke vincularam a legitimidade dos monarcas ao consentimento dos governados e não à inspiração divina. Na Inglaterra, a solidariedade entre grupos sociais relevantes permitia defender seus direitos, mais do que em outros países.

A Revolução Gloriosa inglesa (1688) adveio dessas transformações. A supremacia do poder passou para o Parlamento, ao qual se subordinavam os dois lados do orçamento, a receita (tributos e dívida) e a despesa. O Judiciário se tornou independente. O estado se fortaleceu. A Inglaterra se tornou a maior potência europeia no século seguinte.

Portugal não experimentou o feudalismo, pelo menos nos moldes existentes em outros países europeus. O absolutismo lusitano, livre de contestações semelhantes, sobreviveu até o começo século XX. Sob o patrimonialismo português, as posses do rei se confundiam com o orçamento. Herdeiros dessas tradições, atribuímos pouca importância ao orçamento, que vira peça de ficção. As emendas parlamentares constituem instrumento de barganha entre o Executivo e o Legislativo.

O Brasil avançou em muitas das instituições fundamentais para construir uma democracia funcional e uma economia orientada pelo mercado, associada a programas sociais em favor de segmentos menos favorecidos. Pode dar mais um passo essencial, o de assegurar a natureza impositiva do orçamento.

A mudança seria precedida de medidas para evitar que o Congresso superestime a receita e assim abrigue gastos excessivos e desastrosos. Países como a Alemanha e os Estados Unidos dispõem de mecanismos institucionais pelos quais a estimativa da receita é feita por indivíduos ou organizações independentes. Aqui, isso poderia ser feito por uma comissão mista de técnicos do Executivo e do Congresso, da qual participariam especialistas de reputação e saber reconhecidos.

Para a hipótese de a receita ficar abaixo das estimativas, seriam instituídas regras para o ajuste das despesas, mas sob a aprovação do Legislativo e rito sumário. O Executivo não mais poderia fazer cortes orçamentários, como estabelecido na Lei de Responsabilidade Fiscal. No curso da atual crise europeia, os ajustes na Grécia, na Irlanda, em Portugal e em outros países foram previamente aprovados pelos respectivos parlamentos.

O orçamento impositivo melhoraria a execução orçamentária, reduziria o potencial de corrupção do processo atual e contribuiria para melhorar a qualidade do sistema político.

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