Economia
3 de jun de 2007 , 17h05O Orçamento já é impositivo

A lei 11.451, que “estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2007”, não diz que o Orçamento é “autorizativo”. Esta estranha interpretação interessa ao Executivo, que precisa neutralizar os aumentos de despesa pelo Congresso. Por isso, é versar sobre o óbvio falar em Orçamento impositivo, em resposta às revelações da Operação Navalha.
Pelo artigo 165, parágrafo 8º, da Constituição “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa”. Assim, como na lei 11.451, a receita é estimada e a despesa é fixada. Se não fosse assim, usar-se-ia apenas os verbos “prever” ou “estimar”.
A ideia do Orçamento “autorizativo” tem duas explicações. Primeira, nossas tradições ibéricas, que nos legaram uma cultura que não valoriza o Orçamento como limite ao arbítrio dos governantes. Segunda, a tradicional irresponsabilidade fiscal do Congresso. Se o Orçamento fosse impositivo, as despesas ficariam incontroláveis.
O processo orçamentário contemporâneo tem suas origens na Inglaterra do século 17. Pela “Bill of Rigths” de 1688, que culminou a evolução iniciada com a Carta Magna de 1215, a supremacia do poder passou para o Parlamento, que adquiriu a competência exclusiva de decidir sobre a despesa pública. O rei perdeu o poder de gastar a seu critério e a Coroa passou a submeter-se à auditoria de suas contas.
O Orçamento inglês inspirou outros países e contribuiu para o desenvolvimento. Os avanços institucionais tornaram previsíveis o gasto e o endividamento públicos. Até hoje, o processo orçamentário é pleno de simbolismo e solenidade. O “Chancelor of the Exchequer” (ministro da Fazenda) caminha todos os anos de sua residência oficial em Downing Street ao Parlamento para entrega do projeto.
Portugal e Espanha não viveram essas transformações. Lá, prevalecia o que Raymundo Faoro chamou de “patrimonialismo”. O Orçamento e os bens dos reis se confundiam. Prevalecia o arbítrio nos tributos e nas despesas. A centralização da monarquia ibérica inibiu o surgimento do capitalismo. Aqueles países passaram de potências europeias a primos pobres no início do século 20.
Por isso, o sistema político brasileiro não atribui ao Orçamento a importância que lhes dão os países anglo-saxônicos e outros que adotaram os mesmos princípios. Aqui, existiam as “caudas orçamentárias”, pelas quais se usava o Orçamento para dar nome a ruas, promover funcionários e assim por diante. Daí por que a Constituição de 1934 criou um dispositivo (ainda vigente no artigo citado 165) pelo qual o Orçamento não pode tratar de assunto estranho à despesa e à receita, o que é para lá de acaciano. No experimento democrático de 1946-1964, as emendas parlamentares eram verdadeiros desastres fiscais.
A Constituição de 1988 tentou evitar que o restabelecimento do poder do Congresso de emendar o Orçamento restaurasse aquele ambiente. Pelo artigo 166, parágrafo 3º, as emendas somente podem ser aprovadas se resultarem de anulação de despesa, excluídas as relativas a dotações de pessoal, serviço da dívida e transferências constitucionais a Estados e municípios. Sucede que se estabeleceu que elas podem corrigir “erros e omissões”. Foi por aí que se perdeu a guerra. Sistematicamente, os relatores do projeto usam essa norma para reestimar inapropriadamente as receitas, de modo a fugir das regras e abrigar o máximo de emendas parlamentares, geralmente de cunho paroquialista.
Poder-se-ia aproveitar o clima criado pela Operação Navalha para reconhecer que o Orçamento é impositivo. Bastaria regulamentar o citado artigo 165, estabelecendo que a estimativa da receita será realizada em conjunto por uma comissão de técnicos do Executivo e do Legislativo, o que eliminaria subestimativas e superestimativas dos recursos. Aprovado o Orçamento, os respectivos desembolsos seriam feitos automaticamente conforme cronograma estabelecido na própria lei de meios. Casos de falta ou excesso de arrecadação seriam tratados segundo essas mesmas regras.
O Congresso está diante de uma grande oportunidade de dar um passo para por um fim ao descalabro a que chegaram as emendas parlamentares e eliminar seu uso pelo Executivo como moeda de troca para assegurar lealdades de sua base parlamentar.