Política
24 de set de 2008 , 14h34A crise, a esquerda e o neoliberalismo
Ao saber que o Tesouro dos EUA havia estatizado a Fannie Mae e a Freddie Mac, a esquerda brasileira delirou: a medida teria decretado o fim do neoliberalismo e o fracasso da ortodoxia financeira. Os americanos teriam feito o que nos diziam para não fazer. Países ricos nunca foram neoliberais. E outras bobagens.
Uma semana depois, o mesmo Tesouro deixou o banco Lehman Brothers quebrar e avisou que caberia ao mercado lidar com as conseqüências. Logo em seguida, o Federal Reserve decidiu salvar a seguradora AIG, da qual se tornou sócio.
E agora? O neoliberalismo morreu, ressuscitou e morreu de novo em poucos dias? Na verdade, cada uma dessas situações tem sua lógica. A contradição é apenas aparente. No caso da Fannie Mae e da Freddie Mac (e antes no do banco Bear Sterns), considerou-se que havia sério risco de crise bancária, particularmente no crédito imobiliário. No caso da AIG, a quebra poderia fragilizar perigosamente o mercado financeiro, como disse o Fed em seu comunicado. Quanto ao Lehman Brothers, provavelmente o nível de informações sobre o banco e suas relações de negócios com outras instituições financeiras convenceu as autoridades de que a solução deveria caber ao mercado.
A Fannie Mae e a Freddie Mac não serão uma espécie de Caixa Econômica Federal americana nem o Fed vai começar logo mais a vender seguros. Nos EUA, até as pedras sabem que as instituições que foram estatizadas vão ser privatizadas ou extintas. Os americanos continuam tão capitalistas e neoliberais quanto antes.
A pregação antineoliberal já esteve fora de eixo outras vezes. Poucos dentre os esquerdistas perceberam que o intervencionismo estatal começara a sair de moda nos anos 1970, quando suas respectivas políticas haviam gerado inflação e estagnação.
A reversão dos exageros do estatismo se iniciou nos Estados Unidos e no Reino Unido, nos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Suas reformas incluíram privatização e redução do cipoal regulador. Deu certo. Nos anos 1990, a economia americana cresceu ininterruptamente mais de cem meses, fato inédito.
Os trabalhistas retornaram renovados ao poder em 1997 e mantiveram as bases das políticas de Thatcher. Depois de interromper seu declínio, o Reino Unido voltou a ser uma das principais economias da Europa.
A onda chegou à América Latina anos depois. No Brasil, contra a opinião da esquerda, a privatização e outras mudanças caminharam. A economia se abriu e a inflação foi derrotada. O país ficou previsível. Melhorou o ambiente para o investimento privado. Lula amainou o ritmo das reformas, mas não fez a prometida ruptura na política econômica, que chamava de neoliberal. As mudanças amadureceram e o tempo da colheita chegou.
Governos responsáveis buscam evitar crises bancárias. Como se sabe, a Grande Depressão não veio do colapso da bolsa em 1929, mas da posterior corrida aos bancos, com quebras e aguda retração do crédito. As lições ficaram. Relutância em agir provoca fortes quedas do PIB. Daí a justificativa para o nosso bem sucedido Proer.
No século XVII, a Holanda, menor do que Portugal e com apenas 1,5 milhão de habitantes, tomou posições coloniais dos portugueses, ampliou seus domínios e estabeleceu o primeiro sistema global de comércio. Explicação: as mudanças institucionais e as inovações financeiras que criaram mercados futuros, um sistema de crédito e companhias que vendiam suas ações no mercado. Havia financiamento para quem quisesse lançar-se às conquistas e ao comércio.
Algumas décadas depois, foi a vez da Inglaterra. A Revolução Gloriosa (1688) acarretou mudanças institucionais mais profundas. Direitos de propriedade e respeito aos contatos, alicerces do capitalismo contemporâneo, passaram a ser garantidos por um Judiciário independente. Aconteceu uma revolução no crédito, sem a qual não teria havido a Revolução Industrial.
Quem conhece a História e o papel fundamental do crédito não titubeia em enfrentar os riscos de crises bancárias, como fizeram agora as autoridades americanas. As medidas estão longe de sinalizar o fim do neoliberalismo ou a volta do dirigismo estatal.