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Economia

1 de out de 2014 , 18h19

Carta ao povo brasileiro invertida

Carta ao povo brasileiro invertida

Em 2002, o medo da possível eleição de Lula e das ideias equivocadas do PT abalou a confiança dos mercados. Temia-se, entre outras esquisitices, a proposta de plebiscito sobre o pagamento da dívida externa. Daí a “Carta ao povo brasileiro”, na qual Lula prometia “respeito aos contratos e obrigações do país”. E anunciava “preservar o superávit primário quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”. Já eleito, convidou um banqueiro, Henrique Meirelles, para comandar o Banco Central, ao qual assegurou autonomia operacional. A guinada foi essencial para o crescimento e para ampliar os programas sociais.

Agora, no afã de destruir a ascensão de Marina nas pesquisas, Dilma percorre caminho inverso e assusta os mercados. Diz que a autonomia, prometida pela candidata do PSB, entregaria o BC aos bancos. Em sórdida propaganda, a comida some do prato como efeito de juros pagos a contentes banqueiros.

A autonomia do banco central resultou de longa evolução. Todos os países ricos lhe concederam a independência (a rigor, as palavras autonomia e independência são sinônimas). A autonomia é exigida para ingresso na União Europeia. Na América Latina, ela existe em países bem-sucedidos: Chile, Colômbia, México e Peru. Permite evitar o descontrole da inflação, que corrói a renda e inibe a geração de empregos.

Até o século XVI, a inflação era fenômeno raro. Pagava-se com moedas de ouro ou prata, cuja oferta crescia a ritmo lento. Com a descoberta das minas nas Américas, isso mudou. A oferta de metais aumentou rapidamente. Na Europa, por 150 anos, os preços subiram em média 1,5% ao ano – nível excessivo para os padrões da época –, no que ficou conhecido como “revolução dos preços”.

Entre os séculos XVIII e XIX, o risco de transportar moedas metálicas ampliou o uso do papel-moeda ou moeda fiduciária, que surgira com os certificados emitidos por quem guardava os metais e que eram usados nas transações. Como nem todos vinham retirar os metais, emitiam-se certificados em maior volume, emprestando-se o excedente.

Depois, os governos assumiram a função. Veio o risco de emissões sem controle, o que aconteceu na França na Revolução de 1789 e nos Estados Unidos na Guerra de Independência, provocando inflação. O padrão-ouro, em que as emissões são limitadas ao lastro do metal, eliminou o risco de emitir dinheiro para financiar a dívida pública e mais gastos.

O padrão-ouro foi abandonado na primeira metade do século XX. Ressurgiu o risco de emissões sem lastro. Daí a introdução da ideia de autonomia formal para uma agência governamental, o banco central, a quem cabe emitir moeda. O banco se submete ao controle democrático mediante a obrigação, em lei, da prestação periódica de contas ao Congresso.

A autonomia do banco central é, assim, uma defesa da sociedade. Com mandatos fixos e demissíveis apenas pelo Legislativo, sob justificativa plausível, seus diretores podem resistir à pressão dos governos da hora. Também não se curvam a banqueiros que busquem regulação indevidamente favorável.

A civilização gerou muitas outras boas inovações institucionais. Uma delas, o controle de tráfego, surgiu da necessidade de segurança em meio a uma novidade: o aumento da circulação de veículos; primeiro das carruagens, depois dos automóveis.

O Brasil compõe a lista de países emergentes onde não se enraizou a ideia da autonomia do banco central. Isso se explica pela combinação de baixa educação, desinformação e ideologia anticapitalista. Custa crer que alguém no exercício da Presidência possa recorrer à mentira para ganhar eleições e deseducar o povo. Por extensão, poderia defender o fim dos sinais de trânsito e requerer o comando do controle de tráfego.

Dilma presta um desserviço indesculpável para quem exerce o mais alto cargo do país. Sua visão rasteira sobre a autonomia do Banco Central indica que dificilmente encontrará alguém respeitável para dirigir a instituição. Tenderá a interferir mais na política monetária, e a reeditar o atual ambiente recessivo e de inflação alta deste seu primeiro mandado. Triste.

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