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3 de jun de 2020 , 09h14

A tolerância hibernou

A tolerância hibernou

Além de preferir o confronto e governar de forma, no mínimo, caótica, sem entender como funcionam as instituições, o presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado um alto grau de intolerância. Costuma tratar agressivamente quem não comunga com suas visões de mundo e comumente se refere a líderes de esquerda, governadores e jornalistas como inimigos. Para piorar, sob seu comando funciona um gabinete do ódio, estrutura especialista em disseminar fake news contra supostos opositores em redes sociais.

É um terreno perigoso. A intolerância motivou a fatwa do aiatolá Khomeini, recomendando matar Salmon Rushdie por seu livro Versos Satânicos. Também suscitou os ataques terroristas contra escritores e jornalistas na Dinamarca e, na França, determinou o brutal assassínio de cartunistas e funcionários do jornal satírico Charlie Hebdo.

Essas são ações antagônicas ao que acontece consistentemente nos últimos quatro séculos, quando a tolerância cresceu em todo o mundo. Ficaram para trás posições religiosas intransigentes, que originaram perseguições e guerras sangrentas na Europa. No massacre da Noite de São Bartolomeu (1572), por exemplo, cerca de 30 000 protestantes foram mortos sob a repressão comandada por reis católicos franceses. Até mesmo numa época mais longínqua, da Grécia antiga à República de Veneza, há registros de tolerância.

Opositores devem ser vistos como rivais, não como inimigos

Segundo o cientista político francês Denis Lacorne, tolerar significava, então, condicionar diferentes religiões a se “aturarem” em favor da paz. Em sentido moderno, assinala ele, “tolerância é entendida como a aceitação de crenças e pontos de vista, permitindo que distintos grupos respeitem uns aos outros e ajam coletivamente em prol do bem comum”. Sua origem está nos séculos XVII e XVIII com o Iluminismo, associada a valores como liberdade de expressão e de religião, separação Igreja-­Estado e igualdade perante a lei.

No livro The Limits of Tolerance (2019), Lacorne mostrou a evolução rumo a essa atitude, inicialmente sob a penetrante influência de filósofos iluministas como John Locke e Voltaire, e depois por ativistas políticos americanos como Thomas Paine e Thomas Jefferson. No século XX, a tolerância abrigou grupos antes marginalizados em razão de raça, etnia, identidade cultural e gênero. Em seguida, a mudança envolveu também o casamento homoafetivo.

Para Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, na obra Como as Democracias Morrem, a tolerância é uma das regras informais da política americana. A mútua tolerância — que se consolidou após a Guerra Civil (1861-1865) — incorpora a ideia de que, “se nossos rivais agem de acordo com as regras constitucionais, aceitamos que tenham direitos iguais de existir, competir pelo poder e governar”. Nessa concepção, os opositores são definidos como adversários, não como inimigos. Como bem resume o escritor inglês Sir Arthur Helps (1813-1875), “a tolerância é o único teste real da civilização”.

Se adotassem essa simples visão, Bolsonaro e seus fanáticos seguidores contribuiriam para a convivência civilizada. Crises políticas não ocorreriam com tanta frequência e se poderia reverter a hibernação da tolerância.

Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689

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