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27 de out de 2021 , 10h22

A liturgia do cargo

A liturgia do cargo

A compostura é essencial no exercício da Presidência

George Washington, primeiro presidente dos EUA, foi um mestre na arte da liturgia do cargo. O termo denomina os ritos e as cerimônias das igrejas cristãs. A área política adotou a ideia por seu conteúdo solene. Fala-se também em majestade do cargo.

O presidente Jair Bolsonaro é o antípoda de Washington. Entre os que viram sua foto comendo pizza com ministros, em pé, numa calçada de Nova York, há os que idealizaram a cena como o retrato de um presidente autêntico. Na verdade, ali se viu desleixo e comportamento lamentáveis. Altos servidores precisam dar-se ao respeito.

O cargo de presidente da República tem alto valor simbólico. Como discursa, se veste e se dirige ao público repercutem. Líder maior do país, deve servir de exemplo. Dele se esperam compostura, tolerância, sobriedade, temperança e autocontrole.

Bolsonaro não deveria calçar sandálias de plástico em público, nem receber autoridades trajando camisetas de clubes de futebol. Nada a ver com elitismo. Na democracia representativa, pressupõe-se que a eleição é um processo de seleção de pessoas da elite com atributos para o trato da coisa pública. Isso implica a percepção da liturgia e do significado do exercício do poder, requerendo posturas compatíveis com essas qualificações.

Foi assim com George Washington. Herói épico da vitória na Guerra da Independência contra a Inglaterra, renunciou à remuneração de comandante das tropas. Liderou com equilíbrio, firmeza e dignidade a assembleia que escreveu a Constituição. Lá, perguntado se o chefe do governo deveria ser tratado como “Sua Alteza”, ele optou por chamá-lo simplesmente de “Senhor Presidente”, como é até hoje. A força de seu caráter foi fundamental para a aprovação do texto final e para sua ratificação pelos treze estados originais.

Eleito por unanimidade pelo Colégio Eleitoral, Washington pensou nos mínimos detalhes quando se deslocou, em 1789, de Mount Vernon para Nova York, onde tomaria posse do cargo (a cidade foi a capital entre 1785 e 1790). Avaliava que cada gesto e cada ação criariam precedentes para os próximos governos. No discurso de posse, declarou que gostaria de renunciar a seus honorários. Seu desprendimento não resistiu à lógica. Não foi atendido nessa pretensão. Se fosse assim, somente os ricos, como ele era, poderiam exercer a Presidência. Washington foi talvez o presidente que mais honrou o cargo.

Aqui, o desapreço de Bolsonaro pela forma como procede no cargo bem diz de seu despreparo para ocupar a posição mais excelsa do Brasil. Falar aos berros contra as instituições – como fez na Avenida Paulista no último dia 7 de setembro –, chamar de canalha um ministro do Supremo Tribunal Federal e arvorar-se de rei medieval ao dizer que não cumpriria determinação judicial são provas eloquentes de seu destempero e desequilíbrio. São muitos os casos de comportamento reprovável. Não é estranho, pois, que ele não se preocupe em seguir, com bons modos, a liturgia do cargo.

Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2021, edição nº 2761

Leia mais em: https://veja.abril.com.br/blog/mailson-da-nobrega/a-liturgia-do-cargo/

 

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