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3 de jul de 2011 , 23h06

Faz falta um orçamento impositivo

A recente confusão em torno da liberação de recursos para as emendas parlamentares foi mais uma demonstração de atraso político e institucional em área crucial para o funcionamento do governo e da democracia. Mostrou também a capacidade do ministro da Fazenda de se meter em trapalhadas. Como se recorda, a presidente decidiu prorrogar a utilização de certos “restos a pagar” que incluíam emendas, cuja utilização vencia em 30 de junho passado. Acontece que o loquaz ministro (palavras de editorial do Estadão da semana passada) avisou que novas liberações ficariam bloqueadas por 90 dias, o que revoltou deputados e senadores. O ministro foi desmentido e a base se acalmou.

Isso acontece por causa de duas disfunções do sistema orçamentário e político do Brasil. A primeira é a aceitação da ideia de que o orçamento é “autorizativo”, isto é, o governo pode decidir não gastar o que não for obrigatório por lei, tais como despesas de pessoal, pagamento de pensões e aposentadorias, transferências constitucionais a Estados e municípios e outros semelhantes. A segunda é a utilização de emendas parlamentares como instrumento de barganha política entre o Executivo e o Legislativo.

Embora seja comum entre jornalistas, analistas e observadores, falar em orçamento “autorizativo” é uma aberração que não tem base histórica nem institucional. A aprovação do orçamento público pelo Parlamento é uma conquista construída ao longo de séculos de resistência ao absolutismo dos reis. Foi a forma de impor controles sobre os monarcas e retirar-lhe o poder de gastar a seu talante (normalmente para conduzir guerras). Sua contrapartida natural é a limitação do poder do rei para criar e impor tributos à sociedade. O orçamento é, pois, uma lei. Ao Poder Executivo não assiste o direito de decidir o que cumprir.

O artigo 165, § 8º, da Constituição diz que “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa”. A despesa é, pois, “fixa”. O que se “estima” é a receita. O legislador usou dois verbos exatamente para diferenciar os dois atos, o de gastar (obrigatório) e o de arrecadar (estimativo). O orçamento é, assim, impositivo, como acontece nas democracias modernas, particularmente dos países desenvolvidos. Dar ao Executivo o poder de comandar a despesa é voltar aos tempos medievais, como temos feito desde priscas eras. Infelizmente, a desinformação e a ignorância da História leva os próprios parlamentares a declarar que o orçamento é “autorizativo”. O conceito equivocado se firmou.

É verdade que poderia ser um desastre cumprir a lei orçamentária. O Congresso costuma superestimar a receita para abrigar emendas parlamentares. Desse modo, haveria uma expansão irresponsável dos gastos se o orçamento fosse cumprido. Há, felizmente, formas de obviar esse problema, já testadas em outros países. Na Alemanha, a estimativa do orçamento é feita por consultorias independentes. Nos Estados Unidos, o Congresso tem um órgão independente, o Congressional Budget Office, que faz sérias, responsáveis e acuradas estimativas da receita. No Brasil, poder-se-ia deixar a tarefa a uma comissão mista de técnicos do Executivo e do Congresso (que tem gente muito qualificada nessa área).

O orçamento impositivo poderia gerar outro problema. E se a receita não se comportasse conforme o previsto? Nesse caso, a Lei de Responsabilidade Fiscal já estabelece regras para ajustar a despesa à receita. Talvez fosse preciso mudar essa lei para estabelecer que a mudança deveria ser previamente aprovada pelo Congresso, sob rito sumário.

Com o orçamento impositivo, as emendas parlamentares seriam liberadas automaticamente, obedecendo apenas a um cronograma que levasse em conta o comportamento da receita e a necessidade de distribuir as liberações ao longo do exercício fiscal. As emendas perderiam a perversa de servir como instrumento de barganha. Hoje, os deputados chantageiam o Executivo caso os respectivos recursos não sejam liberados, ameaçando não votar projetos de interesse do governo ou votar a favor de projetos irresponsáveis (caso atual da emenda que equipara os salários das polícias e dos bombeiros de todo país aos dos seus congêneres de Brasília).

A qualidade da gestão pública e da democracia melhorariam substancialmente se a lei orçamentária fosse cumprida, com os cuidados aqui mencionados. As emendas parlamentares, que são comuns em todos os parlamentos, poderiam ser mais bem valorizadas.

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