As leituras liberais tardias de Bolsonaro
Presidente tem invocado o direito de ir vir, porém, se esquece de outras premissas liberais como o direito dos outros e do bem-estar dos próprios indivíduos
Nesta segunda-feira, 26, em Conceição do Jacuípe (BA), o presidente Jair Bolsonaro voltou a condenar governadores e prefeitos que adotam medidas de restrição para reduzir a circulação do novo coronavírus e tentar diminuir o ritmo de mortes pela covid-19. “As Forças Armadas estão aí para garantir a lei e a ordem e para cumprir integralmente a nossa Constituição. Eu te devolvo a pergunta: estão ferindo o artigo 5° da Constituição ou não?”, indagou ao responder uma pergunta sobre o uso de militares para impedir toques de recolher.
O presidente tem invocado o direito de ir vir dos brasileiros, inscritos no artigo 5º da Constituição, que estaria sendo violado por governos locais. Por isso vive afirmando que as Forças Armadas podem ir para rua um dia com o objetivo de “acabar com essa covardia de toque de recolher, direito ao trabalho, liberdade religiosa, de culto, para cumprir tudo aquilo que está sendo descumprido por parte de alguns governadores, alguns poucos prefeitos, mas que atrapalha toda nossa sociedade”.
O direito de ir vir é uma conquista das ideias do Iluminismo e do liberalismo. Mas essa é apenas uma parte da história. Existe outra, a do direito dos outros e do bem-estar dos próprios indivíduos. Como assinalou o escocês John Stuart Mill (1806-1873), um dos grandes filósofos liberais do século XIX, o direito de ir e vir não é absoluto, mas relativo. O Estado pode restringi-lo para proteger a vida e os interesses de outros, isto é, da comunidade. Bolsonaro deve ter lido apenas a primeira parte da filosofia liberal. Não se deu conta de que existe a página seguinte. É típico de leituras tardias.
Na pandemia de Covid-19, foram criadas, em todo o mundo, obrigações e comportamentos destinados a reduzir ou impedir a disseminação do novo coronavírus. Aí se incluem o uso de máscara, o distanciamento social, restrições ao funcionamento das atividades econômicas e o toque de recolher. Ao contribuir para conter a expansão da doença, tais medidas destinam-se a proteger as pessoas que interagem com indivíduos contaminados pelo vírus.
No Brasil, com apoio em decisão do Supremo Tribunal, tais medidas podem ser tomadas por governadores e prefeitos. É assim também, por exemplo, com a segurança de crianças que viajam no banco de trás dos automóveis, quando os pais devem fazer o uso da conhecida cadeirinha. É assim com as medidas associadas à pandemia.
É inconcebível que um presidente da República não possa entender tão simples conceitos.