O Paraguai e a arrogância brasileira

Por qualquer padrão, não há como falar em golpe de Estado no Paraguai. Pode-se questionar a rapidez com que se concluiu o processo de impeachment do presidente Lugo, que teve pouco mais de 30 para se defender. Pode-se afirmar que as instituições democráticas paraguaias são imperfeitas, o que não seria de estranhar na América Latina. A rigor, a decisão do Congresso paraguaio foi adotada sob estrita observância das regras do jogo, ainda que delas não gostemos.

É impossível, por tudo isso, afirma que houve ruptura democrática no país vizinho. Está equivocada, assim, a decisão do governo brasileiro de seguir a Argentina, a Venezuela, o Equador e a Bolívia, os mais estridentes na condenação do “golpe” paraguaio. Em vez de exercer sua liderança para por o mínimo de racionalidade na discussão do assunto, nossos governantes puseram lenha na fogueira e se alinharam a governos ditos de esquerda, que querem aproveitar o episódio para ganhar popularidade interna.

O que houve no Paraguai foi algo semelhante ao processo pelo qual governos parlamentaristas são submetidos a um voto de confiança. Isso ocorre quando o governo está impopular. O voto de confiança pode ser submetido e votado a qualquer momento e sem justificativa. A diferença, em relação ao Paraguai, é que a derrota do governo é imediatamente seguida de eleições gerais, o que não acontecerá por lá.

Aqui, temos visto comentaristas elogiando a decisão de condenar a queda de Lugo. É uma análise, pois, em tudo igual à do governo. Ambos esses lados agem com arrogância. Que direito temos de dizer como os paraguaios devem decidir, principalmente se sua Corte Suprema validou o processo? Alguns aproveitaram para criticar também o Judiciário paraguaio. Gozado, aqui se critica o governo americano quando ele age de forma semelhante.

A prova de que não houve ruptura democrática é a ausência de interferência militar na decisão, a continuidade do funcionamento dos poderes e a tranquilidade nas ruas. Espera-se que a arrogância e a precipitação do Brasil e de seus sócios nas organizações multilateriais regionais não acarretam consequências negativas para a democracia paraguaia nem para as relações econômicas com o país.

O PIB de 2012 e a piada de Mantega

O ministro da Fazenda se aborreceu com a estimativa dos economistas do Credit Suisse para o crescimento do PIB em 2012: 1,5%. Instado por jornalistas, o ministro reagiu com descortesia. “É uma piada. Vai ser muito mais”. Mantega começou o ano estimando crescimento de 4,5%. Depois falou em 4%. Agora diz que será maior do que o de 2011, isto é, os raquíticos 2,7%.

A descortesia do ministro é reflexo da cultura stalinista de segmentos do PT. Stalin não admitia ser contrariado. Em vez de argumentos, desmoralizava quem o contestasse (não raramente o infeliz sumia, literalmente). Stalinismo é, pois, desqualificar o interlocutor, em lugar de contrapor argumentos contrários.

Mantega poderia ter dito que discordava da projeção do Credit Suisse. Algo assim: “O Credit Suisse tem o direito de fazer exercícios econômicos, mas o governo discorda de sua projeção de crescimento do PIB para 2012. Nossos cálculos apontam um desempenho melhor do que 1,5%”.

Acontece que a projeção do Credit Suisse pode se confirmar. Nós da Tendências Consultoria estimamos 1,9% para este ano. As projeções têm sido revistas por muitos, continuadamente. Os mais otimistas falam em 2,5%, mas a maioria projeta um número em torno de 2%.

A economia tem perdido dinamismo. O potencial de crescimento está diminuindo. Dificilmente será possível crescer mais do que 4% em futuro próximo. É a consequência dos anos sem reforma , neste ano, dos efeitos da crise mundial. A produtividade, chave para o crescimento, vem caindo.

Suponha que o resultado final do PIB ser aproxime da previsão do Credit Suisse. Quem seria uma piada?

Discurso na festa de meus 70 anos

Neste sábado 19/5/2012 comemorei com amigos e familiares os meus 70 anos. Pronuncei na ocasião um discurso de 15 minutos, no qual fiz um breve retrospecto de minha trajetória e da evolução do Brasil.

O BRASIL DEU CERTO

Maílson da Nóbrega

Discurso na festa de comemoração de seus setenta anos

São Paulo, 19 de maio de 2012

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Meus filhos, minhas noras, meus netos, minhas netas, minha esposa Rosa, minha ex-esposa Rosinha, que não pôde estar aqui. Meus muitos amigos de São Paulo e do Brasil. Agradeço o imenso carinho e o apoio de todos vocês. Sou muito feliz por tê-los ao meu lado nesta noite.
Muitos brasileiros já podem, como eu, comemorar os setenta anos. Esta é uma das muitas conquistas do país. Mas nem todos atingem essa idade cercados de tantos familiares e amigos. Esta é uma dádiva que a vida me concedeu. Menor ainda é o número dos que chegam nesse ponto em pleno vigor físico e mental. Esta é uma conquista pessoal.
É por isso que vou demorar muito a me aposentar. Pretendo continuar ativo ainda por muitos anos. Como afirmei em minha biografia, meu plano é trabalhar até os noventa anos. E descansar os quinze restantes.
Sou mesmo um privilegiado, por muitas razões. A vida sempre me trouxe sorte e oportunidades. E sempre procurei estar pronto para aproveitá-las, empenhando-me em estudar. Aos dez anos, na cidadezinha paraibana onde nasci, comecei a trabalhar. Com apoio e esforço dos meus pais – um alfaiate e uma costureira – fui morar sozinho em João Pessoa, aos doze anos. O Brasil também começava a deixar o campo. Fui trabalhar em Cajazeiras, interior da Paraíba, depois de passar no concurso para o Banco do Brasil, que eu ajudaria a mudar, anos mais tarde. O Brasil também tinha muito a ser aperfeiçoado.
Lufadas de sorte e dedicação me levaram ao Rio de Janeiro. De lá, mudei para Brasília, quando a nova capital ainda se consolidava. Minha carreira se acelerou. Virei ministro da Fazenda, em um período dos mais difíceis do Brasil. E em 1990 vim para São Paulo.
Privilégios foram muitos – e não incluem favores do governo. Um dos maiores foi ter vivenciado o período de maior transformação do Brasil. E ter contribuído para a construção da nova e promissora realidade institucional do país.
É minha trajetória que me permite afirmar, ousadamente: o Brasil deu certo. Dar certo não é garantia de que vamos integrar o grupo dos países ricos. Significa que construímos a plataforma que nos permite decolar. O voo e sua altura dependerão de prepararmos as condições para crescer e prosperar
A ideia não é nova. Ela está no título de um de meus livros, de sete anos atrás: “O Futuro Chegou”. Foi o que conclui ao examinar a evolução institucional de países desenvolvidos e do Brasil. Mostrei que já temos as instituições básicas para avançar e progredir. Instituições, na definição de Douglass North, prêmio Nobel de Economia, são as regras do jogo, formais e informais. Elas alinham incentivos para a atividade de empreender, inovar, assumir riscos.
As novas instituições brasileiras não são produto de um líder, de um grupo, de um governo ou de um partido político. Elas se formaram ao longo de muitos anos, de forma incremental, em distintos governos.
Com elas, cruzamos uma linha divisória, da qual dificilmente retrocederemos. Ainda assim, crises podem ameaçar essas conquistas. A inflação pode vir a nos assombrar. Felizmente, mecanismos institucionais contribuem para restabelecer o equilíbrio e para preservar as conquistas da estabilidade política e econômica.
São muitas as instituições e crenças do novo Brasil. Eu destaco cinco essenciais:
1) Democracia. Mesmo com defeitos, a democracia se tornou um valor fundamental da sociedade. Deixou de ser uma planta frágil. Desenvolveu raízes profundas. O desafio é radicalizá-la com reformas.
2) Judiciário independente. Suas deficiências são conhecidas, mas sua independência é irrefutável.
3) Imprensa livre e independente. Essa conquista equipara-se à da democracia. Somente uma minoria de mente autoritária imagina submetê-la ao chamado “controle social”. A crítica é exercida ampla e livremente. As ideias fluem. A imprensa é vigilante. Não tem medo de denunciar.
4) Sociedade intolerante à inflação. Os poucos que ainda acreditam que a inflação contribui para o desenvolvimento não têm coragem de defender publicamente essa mentira.
5) Disciplina de mercado. O governo precisa pensar muito antes de adotar medidas. Precisa avaliar a reação dos agentes econômicos. As novas instituições transformaram incertezas em riscos, que os mercados sabem avaliar e precificar. Mercados sofisticados constituem poderoso aliado dos eleitores no julgamento de maus governos.
Há uma nova conquista em gestação. Já nos indignamos com a corrupção. A imprensa tem exercido papel decisivo. A tecnologia escancara desvios de conduta. A corrupção não foi extinta em nenhum lugar, mas diminuiu muito nos países que podem detectá-la, investigá-la e punir os faltosos. E isso em parte já começa a acontecer no Brasil. Falta ainda colocar os corruptos na cadeia. Sem privilégios.
O Brasil é agora previsível e transparente. Podemos identificar e corrigir erros. Somos agora menos suscetíveis de acumular distorções geradoras de crises.
O cientista político nipo-americano Francis Fukuyama escreveu recentemente uma obra monumental, em que analisa a evolução da ordem política desde a Antiguidade. Um de seus mais importantes insights é o de que os países que se tornaram prósperos e continuaram prósperos são aqueles que, como a Inglaterra do século XVII, construíram três bases fundamentais, que formam uma “ordem política virtuosa”: Estado forte (no sentido institucional), Estado de Direito (as instituições que garantem o direito de propriedade e o respeito aos contratos) e accountability, isto é, a prestação de contas do governo à sociedade; a justificação de suas escolhas; a responsabilização social e política pelo exercício de cargos públicos e pelo uso dos recursos dos contribuintes; e a submissão periódica ao voto popular. A nova lei de acesso à informação, que entrou em vigor esta semana, vai reforçar o ambiente de accountability.
Ainda falta muito para nos igualarmos aos países maduros e ricos, mas a democracia, o Judiciário independente, a imprensa livre e as eleições frequentes nos dizem que estamos no caminho daquela “ordem política virtuosa”.

Meus amigos, meus familiares,
na trajetória brasileira, muitas vezes a impressão foi de fracasso e o derrotismo nos dominou. Crises trouxeram desânimo. Mas as esperanças renasceram. O otimismo é traço característico dos brasileiros, o meu inclusive. Apesar das crises e dos momentos de desesperança, o Brasil nunca deixou de avançar.
Em “Por que me ufano de meu país”, do início do século XX, o Conde Afonso Celso nos vaticinava um futuro promissor. Seria o resultado da grandeza territorial, da beleza do país, do rio Amazonas, da cachoeira de Paulo Afonso, da floresta virgem, da baía de Guanabara, das riquezas naturais, da ausência de calamidades. Seu ufanismo era ingênuo, como comprovariam a crise do fim da República Velha e os efeitos da Grande Depressão. Ficamos desesperançados.
A Revolução de 1930 acendeu novas esperanças, mas elas foram logo empanadas pelo golpe de 1934 e pela primeira ditadura pós Independência. As instituições plantadas por Getúlio Vargas fortaleceram o Estado e consolidaram a unidade nacional. Nasceram as ideias de uma burocracia profissional. Passos foram dados em prol da industrialização. No front externo, logo depois, participamos da Segunda Guerra. Colaboramos para a formação da ONU e das instituições de Breton Woods. O Brasil parecia ter mudado de patamar. Mas vieram as frustrações dos anos 1950: a incrível derrota para a seleção de futebol do Uruguai e a crise que desaguou no suicídio de Vargas.
Mas os anos 1950 também foram os de Juscelino Kubitschek. Ele mobilizou energias e revigorou o otimismo. A indústria automobilística e de outros bens de consumo duráveis se expandiu. Parecia confirmar-se a procedência da tese da industrialização por substituição de importações, que, como viemos a aprender, não foi assim tão bem sucedida. A construção de Brasília evidenciava nossa capacidade de assumir desafios e ocupar espaços. A Sudene prometia resgatar o Nordeste da pobreza. Mas tudo isso gerou graves desequilíbrios. Novas frustrações vieram nos anos 1960. Nova crise política e econômica parecia dizer que o Brasil não tinha jeito.
O regime militar suprimiu a democracia, mas restabeleceu esperanças na economia. Amplas reformas institucionais nos legaram um sistema tributário moderno, o Banco Central, a Lei de Mercado de Capitais, avançadas regras de comércio exterior, a racionalização do regime aduaneiro, a modernização do serviço público e as bases do que viria a ser um sofisticado sistema financeiro. A infraestrutura de comunicações, transporte e energia se expandiu vigorosamente. Nasceu a Embrapa. Ganhos espetaculares de produtividade nos permitiram crescer a taxas chinesas atuais: 11,1% ao ano entre 1968 e 1973.
A desesperança ressurgiu mais uma vez nos anos 1980. Distorções do modelo de economia fechada se somaram a sucessivas crises externas. A democracia renasceu em 1985 em meio à nossa maior crise econômica. A inflação se agravou. Cinco planos em quatro anos e dois governos fracassaram na tentativa de domá-la. A crise ofuscava os avanços institucionais do período. O Brasil parecia não ter futuro, nem com a ditadura, nem com a democracia.
O otimismo foi novamente reavivado com o Plano Real. A inflação foi derrotada, tudo indica que de uma vez por todas.
A estabilidade de preços acelerou as mudanças. Novos avanços se somaram aos que haviam ocorrido nas finanças públicas na década anterior, incluindo o fim da “conta de movimento” do Banco do Brasil, a reforma do Banco Central, a criação da Secretaria do Tesouro Nacional e a abertura da economia. A lista é enorme: Lei de Responsabilidade Fiscal, privatizações, nova lei de petróleo (recentemente piorada), reestruturação do sistema financeiro, abertura da infraestrutura ao capital estrangeiro, regime de metas para a inflação, câmbio flutuante, superávits primários no setor público, solução para a periclitante dívida de Estados e municípios.
Em 2002, pela primeira vez em mais de cinquenta anos um presidente eleito transmitiu o poder a outro igualmente eleito. Este prometia a ruptura na gestão macroeconômica, amedrontando os mercados. Mas a política econômica foi mantida, demonstrando a maturidade do país e de seus líderes. O Brasil pôde usufruir os efeitos das reformas anteriores e dos ganhos do comércio com a China. Diminuiu drasticamente a vulnerabilidade externa, a fonte de crises passadas. Estávamos preparados para resistir à nova e grave crise mundial.
A pobreza e as desigualdades sociais diminuíram. A classe média se tornou majoritária. Elegemos a primeira mulher para a presidência da República. Uma nova classe empresarial constrói empresas mais eficientes e inovadoras. Em 1945, apenas 5% dos brasileiros podiam votar. Agora são mais de 70%.
O país se destacou aos olhos dos brasileiros e do mundo. Viramos ator global e a sexta maior economia do mundo.
Apesar do quadro animador, é necessário conter o otimismo e não nos deixarmos cegar diante dos riscos. Espalha-se a percepção de que começamos a pagar o preço da quase paralisação das reformas. Os ganhos de produtividade se esgotam. O potencial de crescimento diminui. A indústria passa por alarmante perda de competitividade. O governo se assusta, mas age apenas com medidas pontuais desconectadas, que não formam uma estratégia coerente. Voltam ao palco velhas ideias da época da substituição de importações, do protecionismo e da escolha de vencedores pela burocracia. O voluntarismo impera nas políticas monetária, creditícia e cambial, pondo em risco a estabilidade macroeconômica. As ameaças estão mais aqui do que fora.
Será o prenúncio de mais um fracasso? Voltaremos à instabilidade? Devemos ser pessimistas? A meu ver, não. Apesar de tudo, reafirmo: o Brasil deu certo. Nenhum dos fracassos anteriores eliminou completamente os avanços. A decepção com os rumos atuais não pode obscurecer a nova realidade. O país construiu sólidos alicerces. Temos tudo para resistir a eventuais mudanças dos ventos.
Na trajetória brasileira haverá bons e maus governos; lideranças ineptas e lideranças transformadoras; momentos de crise e de prosperidade; períodos de forte crescimento, de desempenho medíocre e de recessão. Mas ninguém será capaz de impor o retrocesso ou de destruir as nossas conquistas. As instituições estão firmes. Por isso, volto a afirmar:

O Brasil deu certo. Há razões para continuar otimista. Eu continuo.

O que seria uma ação correta do governo em relação aos bancos

O ataque de Dilma aos bancos tem recebido apoio de economistas, empresários e jornalistas. Mesmo os que criticam a cruzada santa da presidente contra os juros altos dizem caber razão à presidente. Alegam suposta existência de um cartel de instituições financeiras. Tem sido comum a referência a lucros “excessivos” ou “exorbitantes”.

Como se sabe, lucros excessivos ou exorbitantes decorrem da ausência de concorrência nos respectivos mercados. Assim, quem alega isso está implicitamente admitindo que os bancos operam em conluio para aumentar seus ganhos em detrimento dos tomadores de crédito. Haveria, assim, um domínio do mercado financeiro por essas instituições.

A cruzada do governo não deixa de estar influenciada por esse tipo de análise. Basta ver as declarações da presidente da República – que cita o que lhe parece uma “lógica perversa” por trás dos juros altos – e do ministro da Fazenda – que assegura existir espaço para os bancos reduzirem seus lucros. Se o ministro pensa assim, ele acusa indiretamente os bancos de agirem em cartel. Se podem reduzir os lucros, na visão do ministro eles estão obtendo lucros “excessivos”.

Há estudos mostrando que não existe esse cartel no Brasil, mas admitamos que eles estão equivocados. Em países democráticos, dotados de boas instituições e nos quais não há preconceitos de qualquer espécie contra o regime capitalista e empresas do setor privado (inclusive bancos), a atitude correta jamais seria a adotada pela presidente e pelo ministro da Fazenda.

O certo seria acionar o Banco Central e o Cade, que são os órgãos com mandato legal para avaliar situações como a alegada. Se constatado o cartel, caberia a esses órgãos definir ações para aumentar a competição no mercado financeiro. Baixar os juros na marra, inclusive utilizando instituições financeiras públicas (uma das quais com acionistas privados e aderente às regras do Novo Mercado da Bovespa), é equivocado sob todos os pontos de vistas, inclusive os de natureza regulatória e de defesa da concorrência. Dá popularidade, mas não é sério.

O Banco Central tem quadros técnicos capazes. Sua diretoria é formada de pessoas altamente qualificadas, com profundo conhecimento de política monetária e crédito, e de questões regulatórias. Por que será que não alertam a presidente e o ministro da Fazenda?

Juro no pasto: o assustador ataque de Dilma aos bancos

O Brasil tem uma das maiores taxas de juros do mundo. Certo. Também tem um dos maiores níveis de emprego informal do planeta. Correto. As duas expecionalidades resultam de problemas estruturais acumulados ao longo de muitos anos, de díficil solução a curto e médio prazos e dependentes de complexas reformas institucionais. Os bancos não são, ao contrário do que se pensa, os grandes culpados pelas altas taxas de juros, assim como os empresários não são a causa da informalidade no mercado de trabalho.

Mesmo assim, a presidente Dilma fez ontem à noite um duro e assustador ataque contra os bancos, em cadeia nacional. Para ela, é “inadmissível que o Brasil, que tem um dos sistemas financeiros mais sólidos e lucrativos do mundo, continue com os juros mais altos do mundo”. Essa, convenhamos, é a percepção da maioria. Há, todavia, muitos estudos que explicam as razões das altas taxas de juros no país, inclusive no governo (Dilma e seus assessores podem ter acesso fácil a esses estudos no site do Banco Central). As taxas de juros altas refletem nossas próprias excepcionalidades em fatores que influenciam o tamanho do spread bancário. Nenhum outro país tributa tanto as transações financeiras ou tem tanto recolhimento compulsório de bancos ao Banco Central. Há outros fatores, como já comentei anteriormente neste blog.

A cruzada contra os bancos tem tudo para aumentar a popularidade da presidente. Com o intuito de reforçar os ganhos, ela incitou a população a forçar a queda da taxa de juros. Bancos não são populares em canto nenhum, mas no Brasil eles chegam a ser odiados. A desinformação, o preconceito e a ideologia formam um caldo complicado. Muita gente deve estar aplaudindo o discurso e dizendo impropérios contra quem criticar Dilma (como faço agora). A exemplo de outras vezes, deverei ser condenado e espezinhado pelo que escrevo, assim que este texto circular no Facebook.

Investir contra espantalhos e mirar efeitos com objetivos políticos tem sido uma característica de governos populistas. Atacar sintomas que a população confunde com causas gera ganhos de popularidade ou reverte sua perda. A perda ainda não é o que move Dilma a atacar os bancos, mas foi o caso dos generais argentinos que invadiram as Malvinas e da recente desapropriação, pela presidente Cristina Kirchner, das ações da Repsol na empresa petrolífera argentina YPF. Tal qual aconteceu em ações populistas semelhantes, particularmente no período de Juan Perón, o povo argentino apoiou: 62% se disseram a favor da desapropriação. O preço, como no passado, será altíssimo. Como diz a pida, “as consequências vêm depois”. A cruzada contra os bancos inclui determinação para que os bancos públicos reduzam as suas taxas de juros. A consequencia poderá ser enormes prejuízos para essas instituições, que serão pagos pelos contribuintes.

Nos tempos do Plano Cruzado, começou a faltar carne nos supermercados e açougues. Era um sintoma de uma causa – o congelamento dos preços – difícil de ser identificada pela população. A carne faltava porque o preço do boi gordo, tabelado, era inferior aos custos de produção. Vender a tal preço signficaria a falência. Como ocorreu em outros períodos da história mundial, os pecuaristas procuraram preservar o patrimônio duramente construído. Era melhor guardar o boi, arcando com o respectivo custo, do que levá-lo com prejuízo ao matadouro.

Como se recorda, o governo empreendeu, com apoio do ministro da Fazenda Dilson Funaro, uma ridícula ação de caça ao boi no pasto, empregando helicópteros e policiais federais. Deu no que deu. O errado era prolongar um congelamento insustentável, não a reação dos pecuaristas. Eles não eram especuladores, como se falava. Apenas buscavam se salvar da insanidade destruidora do governo. Do jeito que a coisa vai, Dilma terminará caçando juro no pasto. Isso porque, ao contrário do que ela e seus assessores pensam, os juros no Brasil não vão convergir tão cedo para níveis internacionais. A informalidade do mercado de trabalho tampouco será em breve a dos países desenvolvidos. Cabe lembrar que Funaro tabelou, sem sucesso, o spread bancário. Dilma fará o mesmo? Não me surpreenderia.

O Brasil vem perdendo o encanto em certos círculos no exterior, isto é, os que acompanham de perto os rumos da gestão governamental, particularmente da política econômica. A percepção de perda de dinamismo da economia brasileira é crescente. E das intervenções mal feitas na economia também. Isso leva tempo para se disseminar. Em algum momento, chegará às áreas de planejamento estratégico das empresas que investem ou pensam em investir no Brasil. O discurso de Dilma contra os bancos dará uma contribuição adicional para a mudança de percepção de aumento dos riscos.

Dilma fala de novo de juros. E politiza o tema

A presidente não pára de falar no tema dos juros. Por onde ela vai, os jornalistas a enchem de perguntas. É a pauta mais quente destes dias. A rigor, esse não é assunto para o chefe do governo, mas Dilma sabe que a opinião pública adora que falem mal dos bancos. E vem sendo recompensada, pois seus ganhos recentes de popularidade têm a ver com sua cruzada pela queda do spread bancário.

Ontem, ela disse não haver justificativa técnica para a nível da taxa de juros no Brasil, dada a sua situação macroeconômica. Acontece que a gestão macroeconômica responsável pode contribuir para melhorar a confiança, mas no caso brasileiro pouco pode fazer para trazer os juros para níveis internacionais, como querem a presidente, empresários e alguns formadores de opinião.

Há razões técnica de sobra para que os juros brasileiros sejam o que são. Quem tiver estudado o mínimo do assunto sabe disso. Os melhores estudos são do próprio governo. Basta ir ao site do Banco Central e procurar pelos estudos sobre spread bancário. Os juros são altos por causa da baixa taxa de poupança e porque um terço da oferta de crédito está imune aos movimentos da taxa Selic (particularmente os empréstimos do BNDES). Como a taxa afeta apenas dois terços, ela precisa ser mais alta do que seria necessário se influenciasse o todo. Há outras razões, mas essas são as principais.

Ao dizer que não há justificativa técnica para o nível da taxa de juros, Dilma sugere que seus antecessores, inclusive Lula, estavam errados. Os juros são muitos elevados há muitos anos. Em segundo lugar, sinaliza estar disposta a uma ação política para fazer baixar os juros na marra. Até pode fazer isso dando ordens ao Banco Central para continuar baixando os juros (tornando claro o que já se suspeita), reforçando o comando para o Banco do Brasil e a Caixa Econômica continuarem a baixar seus juros. E dar mais dinheiro do Tesouro para o BNDES ampliar os subsídios creditícios.

Já se viu esse filme em outras ocasiões, aqui e em outras experiências populistas da América Latina. No final, o resultado será uma expansão irresponsável do crédito, a ampliação insustentável da demanda, a inflação e enormes prejuízos para os bancos estatais. A conta será paga pelos consumidores e pelos contribuintes, que na verdade são as mesmas pessoas. Adicionalmente, o potencial de crescimento diminuirá.

Por que a taxa de juros não converge para níveis internacionais

Semana passada, a presidente Dilma disse não haver razão técnica para o tamanho do spread bancário no Brasil. E foi mais longe. Sob aplausos, declarou em evento na Confederação Nacional da Indústria que a taxa de juros deveria convergir para níveis internacionais. Fala-se que isso seria o “Plano Real” de Dilma. A visão da presidente é apoiada por empresários e por conhecidos economistas brasileiros.

A declaração da presidente é parte da ofensiva dela e de seu ministro da Fazenda para reduzir o spread. Começou com a recomendação aos bancos públicos para baixar as taxas de juros, os quais, à falta de maior lógica, disseram que o movimento tem bases técnicas e objetiva ganhar mercado. Se for para valer e der certo, será a glória para o governo. Se der errado, como parece, o custo cairá sobre os contribuintes e sobre a imagem dessas instituições, particularmente a do Banco do Brasil, que vinha construindo uma reputação de gestão profissional, infensa a pressões políticas.

Os juros do Brasil não podem cair na marra, como quer o governo, nem atingir padrões internacionais no curto e médio prazos. Para igualar-se aos países que praticam taxas de juros muito menores, em especial as nações ricas, seria preciso também gerar iguais condições ambientais. Infelizmente, não é a realidade. O Brasil é o único país que tributa pesadamente as transações financeiras e os empréstimos. A tributação representa mais de 20% do spread. Aplicamos o maior nível de recolhimentos compulsórios dos bancos, cujo custo responde por 5% do spread. A baixa qualidade das garantias, as visões anticredor de juízes e a lentidão do processo judiciário acarretam inadimplência que gera um terço do spread. O custo administrativo representa 12% e a margem de lucro dos bancos pouco mais de 30%.

Se os bancos decidissem transferir aos clientes todos os seus lucros, mesmo assim o Brasil continuaria campeão do spread, caso suas causas estruturais permanecessem (o que é muito provável). Sempre se pode atacar essas causas, mas para isso se exige tempo e complexas ações. Não é possível, pois, resolver o problema no grito.

Além disso, neste momento a taxa de juros nos países ricos atingiu níveis baixos inéditos, próximos de zero. Isso decorre de medidas para evitar uma depressão econômica, preservar o sistema financeiro de uma nova e grave crise, e evitar o colapso do euro. Não há como reproduzir essas condições por aqui.

Em resumo, baixar o spread é desejável, mas fazê-lo com medidas de cunho voluntarista, sem a consideração adequada dos fatores que explicam a elevada taxa de juros no Brasil, pode dar errado. E custar muito ao país.

Dilma vai aos Estados Unidos. E erra

Dois equívocos foram cometidos pela presidente Dilma em sua recente viagem oficial aos Estados Unidos. O primeiro foi repetir o que ela já vinha dizendo no Brasil, isto é, que a expansão de liquidez (que ela chama de “tsunami monetário”) tem o objetivo de desvalorizar moedas dos países desenvolvidos e assim prejudicar a economia dos países emergentes, reduzindo sua competitividade. O segundo foi levar sua queixa ao presidente Obama.

A expansão de liquidez, adotada pelos bancos centrais dos EUA, do Reino Unido, da Zona do Euro e do Japão visou a evitar duas catástrofes. No caso particularmente dos Estados Unidos, o objetivo foi prevenir a repetição da Grande Depressão. O presidente do Fed, Ben Bernanke, um dos grandes estudiosos do fenômeno, sabe que uma de suas causas foi a contração de liquidez promovida pelo banco central americano. Sua ação nos últimos meses, denominada “quantitative easing”, foi a forma de evitar a “armadilha da liquidez”, que é a situação em que o Banco Central não tem mais como reduzir a taxa de juros. Na Europa, o objetivo foi evitar que a crise de endividamento desaguasse numa crise financeira, com quebras de bancos, que poderiam acarretar o colapso do euro.

Até agora, os objetivos foram alcançados. O mundo está melhor do que estaria sem as medidas, ainda que elas tenham efeitos colaterais, como o de provocar a valorização de moedas de outros países. A presidente Dilma e seu ministro da Fazenda, que vivem falando contra tais medidas, parecem sugerir que o melhor seria deixar os países ricos quebrarem. O Brasil ficaria em pior estado. Assim, a rigor, Dilma deveria apoiar as medidas e dela extrair legitimidade para agir no sentido de contrabalançar seus efeitos colaterais sobre a economia brasileira.

Pior mesmo foi levar a queixa a Obama. Ele nada tem a ver com isso. Primeiro, porque o Fed é independente. Não recebe ordens da presidência. Segundo, porque nem ele nem o Fed têm condições de forçar outros bancos centrais a atender os apelos da Dilma, mesmo que eles tivessem procedência. Talvez a presidente tenha sido traída por sua visão pessoal do processo. Fala-se que ela tem dado ordens ao Banco Central para reduzir a taxa de juros.

Há uma explicação para esses equívocos. O propósito da reclamação dela seria a busca de um inimigo externo, para por a culpa pelos problemas internos, que nós próprios criamos. A técnica é conhecida. Os argentinos a usaram na guerra das Malvinas. Líderes populistas latino-americanos a adotaram em diferentes circunstâncias, quase sempre utilizando os Estados Unidos como vilão.

Não fossem apenas esses equívocos, a presidente resolveu falar de juros e spread bancário em sua estada nos EUA. Isso agrada empresários e certos formadores de opinião, mas não é compatível com a majestade do cargo. Presidentes e ministros da Fazenda não falam de juros. Isso é no máximo tarefa do presidente do Banco Central. Fazer o que? A presidente e o ministro adoram falar do tema.

Agora, o controle de preços da gasolina é oficial

Até os anos 1980, quando vigorava o controle de preços, a gasolina e o diesel eram dois dos principais itens sob vigilância do governo. No governo Geisel, os órgãos que autorizavam reajuste de preços públicos ou de bens fornecidos por empresas estatais perderam o poder para o Ministério da Fazenda, que passou a dar a última palavra sobre o assunto. Depois do Plano Real, todo esse processo foi revisto, reduzindo-se ou eliminando-se a interferência da Fazenda no controle de preços públicos.

No caso da gasolina e do diesel, a maior abertura da Petrobrás ao investimento estrangeiro exigiu a fixação de regras claras para o reajuste da gasolina e do diesel. No governo FHC, estabeleceu-se uma fórmula paramétrica, que levava em conta os preços praticados no Golfo do México e não a vontade da Fazenda. No governo Lula, a regra foi paulatinamente deixada de lado e a Petrobrás se submeteu a rigoroso controle de preços, que se acentuou nos anos finais da primeira administração petista.

No governo Dilma, o paulatino afrouxamento da política monetária começou a por sob risco o cumprimento da meta para a inflação. Em meados de 2011, as expectativas inflacionárias sinalizavam que o limite superior da meta seria ultrapassado. Isso coincidia com a elevação dos preços do petróleo, na esteira da piora da crise global, particularmente na Europa. Ficou clara a defasagem dos preços da gasolina e do diesel, mas o governo decidiu não revê-los. Era uma questão de honra cumprir a meta para a inflação e assim desmentir os prognósticos dos analistas de consultorias e de instituições financeiras.

As interferências do governo na Petrobrás, particularmente o controle de preços, provocaram forte queda de suas ações no mercado. Ao mesmo tempo, o controle impunha pesado ônus à indústria do etanol, cujos preços mantêm uma relação com os da gasolina. Foi então que o governo recorreu a um velho artifício dos tempos passados, qual seja o uso da tributação para atenuar os estragos do controle de preços. Autorizou-se a Petrobrás a reajustar os preços, mas sem impacto no consumidor, manobra que se tornou possível mediante renúncia do Tesouro à arrecadação da Cide, que incide sobre tais preços. Alivou-se a Petrobrás, sem aliviar os produtores de etanol.

Com essa e outras manobras, o governo conseguiu cumprir a meta para a inflação. O IPCA de 2011 variou precisos 6,5%, justamente o limite superior da meta. Em nenhum momento, o governo admitiu que manipulava os preços dos derivados de petróleo, pois isso seria confirmar a maquiagem do índice de inflação e reduzir ainda mais a já abalada credibilidade do Banco Central e do regime de metas.

O Estadão de ontem escancarou o controle de preços da Petrobrás. Em entrevista, o ministro de Minas e Energia reconheceu a manobra com a Cide. Mais grave ainda, informou que a empresa pediu o reajuste da gasolina, mas o governo não decidiu ainda se concordará. Para ele, embora a gasolina esteja há nove anos sem reajuste, “o governo tem suas responsabilidades também com o processo inflacionário. Tem de olhar a necessidade da Petrobrás, até para seus investimentos, mas olha também o interesse da economia”. E prosseguiu: “a balanço tem dois pratos. De um lado, o interesse legítimo da Petrobrás. De outro, o interesse legítimo de conter a inflação”.

É inacreditável, mas verdadeiro. O governo diz, com todas as letras, que interfere nos preços de uma empresa de capital aberto, com acionistas no Brasil e no exterior, que acreditaram na seriedade e no profissionalismo da gestão da empresa. E desmoraliza o regime de metas para a inflação ao explicitar que o Banco Central é auxiliado por controle direto de preços de produtos importantes na composição do índice de inflação. A rigor, caberia a abertura de um inquérito pela CVM. Ou uma ação dos acionistas minoritários contra o governo.

Na “guerra dos portos”, um dispendioso tiro n’água

Diagnósticos equivocados costumam resultar na prescrição errada do remédio e provocar efeitos colaterais indesejáveis. Esse é o típico caso da decisão do governo de lutar pelo que entende ser a “guerra dos portos”. A ideia, defendida por lideranças da indústrias e apoiada pelo Ministério da Fazenda, é eliminar os incentivos fiscais do ICMS criados por alguns Estados para importações por seu território, inclusive via portos secos (caso de Tocantins). A medida está na proposta de Resolução 72, do Senado.

Intuitivamente, faz sentido. Se os Estados barateiam o valor da importação, diz-se, o produto entrará no país em competição desleal com a indústria brasileira. Assim, o incentivo equivaleria a uma valorização cambial e contribuiria para a desindustrialização do país. Será?

Um exame mais detido da questão dirá que a medida em estudo pode acarretar novos problemas sem resolver aquele que se imagina existir. A grande maioria dos bens importados com tais incentivos é constituída de matérias-primas, partes, peças e componentes. Tudo indica que a indústria que os importa recorre ao benefício diante da necessidade de mudar sua cadeia de suprimentos. É uma forma de lidar com a perda alarmante de sua competitividade, provocada por problemas estruturais graves (que todos conhecem e não precisam ser aqui comentados). Ou mudam, comprando mais barato, ou não preservam o mínimo de competitividade. Ou mudam ou podem morrer.

A decisão das empresas está dissociada, pois, da guerra fiscal. Ela buscará o benefício se o incentivo fiscal superar o custo adicional de transporte (considerado o porto pelo qual importaria naturalmente). Isso posto, a vantagem não é o crédito presumido do ICMS, como vem afirmando o governo, mas o diferencial entre o benefício e o custo adicional de transporte. Está equivocado, assim, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Nelson Barbosa, que ontem no Senado considerou apenas o ganho fiscal para calcular que o incentivo reduz a taxa de câmbio, de R$ 1,80 para R$ 1,64 por dólar.

Ao contrário do que diz o lobby favorável à medida e o próprio governo, a mudança da alíquota interestadual do ICMS pode ter efeito nulo ou muito pequeno nas importações. Um caso interessante, as turbinas para hidroelétricas da região Norte estão sendo importadas pelo Estado de Tocantins, com alíquota de apenas 1% de ICMS. Alguém imagina que elas deixarão de ser importadas com a medida do governo? Se o incentivo acabar e o produto nacional ficar mais caro, as empresas continuarão importando.

Se aprovada, a medida terá quatro efeitos colaterais negativos:

1) o governo terá que compensar os Estados pela perda de arrecadação. Segundo se vê na imprensa, o Espírito Santo perderia cerca de R$ 2 bilhões anuais, quase um terço de sua arrecadação; em Santa Catarina, a perda seria de R$ 1 bilhão. E por aí vai;

2) provavelmente o governo terá que se comprometer a criar um fundo de desenvolvimento regional para compensar a perda do instrumento de atração de investimentos pelos Estados. Quanto será o valor desse fundo? Alguns Estados reivindicam que seja de pelo menos R$ 20 bilhões. Qualquer que seja o valor, mesmo que instituído, deixará descontentamentos;

3) sem a segurança de que serão compensados, os Estados provavelmente conseguirão que seus senadores votem contra a medida, mesmo que pertencentes à base parlamentar do governo. Isso contribuirá negativamente para a coesão dessa base;

4) as importações incentivadas representam cerca de 25% do total. O fim do incentivo deslocará as mercadorias para outros portos, particularmente o de Santos, que já está congestionado. Haverá uma piora na logística, que impactará custos das empresas e reduzirá a competitividade das que exportam.

A guerra fiscal precisa acabar, particularmente porque usa instrumento pouco apropriado, isto é, um imposto sobre o consumo, e porque gera distorções alocativas que conspiram contra a produtividade e o potencial de crescimento. Mas isso não pode ser feito de forma tópica, atabalhoadamente, sob pressão de grupos de interessse, ainda que parte destes tenha razão. É preferível tratar a matéria no contexto de uma reforma tributária digna desse nome. A propósito, a medida do governo em nada contribui para reduzir o manicômio tributário, pois focaliza um aspecto lateral e menos importante, qual seja o das relações federativas e não o da irracionalidade atual do ICMS.

É preciso serenidade, liderança e conhecimento adequado das consequências das medidas, principalmente de seus efeitos colaterais. Não é, infelizmente, o que se vê na ação do governo e na pressão para aprovar a mal estudada Resolução 72 do Senado.